Procuram-se, vivos ou mortos, três alemães que sumiram na floresta amazônica sem deixar vestígios. Gratifica-se a quem der algum indício do paradeiro deles. Favor avisar à Embaixada da Alemanha, embora Angela Merkel, chefe de Governo do seu país nada saiba sobre o caso. Aqui vão os retratos falados de cada um:
João Henrique Meissner, alto como uma sumaumeira, cabelo vermelho cor de fogo e olhos azuis, exala um odor de repolho fermentado em salmoura.
Pedro Gerardo Wortmann tem a mesma estatura, cabelos louros e uma sereia tatuada no braço direito. Fala como se mastigasse pedras. Cada palavra é uma pedrada.
Guillermo Dorotheo Ulrich, cara quadrada, cabelos castanhos claros, queixo de vovó Filó. Usa óculos. Tem um cacoete: é pisca-pisca, vive pisca-piscando.
Os três, que se amarram num chucrute e numa cervejinha, quando podem estraçalham um arenque defumado do Mar do Norte regado com vinho branco feito com uvas ensolaradas do vale do Mosela. Não dispensam torta de maçã. Mas onde encontrar arenque, uva e maçã na floresta amazônica?
Cadê os alemães?
Onde está Meissner? Quem viu Wortmann? Cadê o Dorotheo Ulrich? Com aquele porte de castanheira, eles não podem ter se evaporado sem deixar a menor pista.
Consulados e embaixadas se mobilizam nervosamente. Diplomatas ouriçados tem ataques de faniquito. Os Ministérios das Relações Exteriores dos dois países, em polvorosa, já troca-trocaram vasta correspondência. Autoridades locais esquadrinharam as clareiras da floresta e todos os becos de Belém e Manaus. Inutilmente. Mães e noivas aflitas de Frankfurt esperam ansiosas que os sequestradores digam quanto querem pelo resgate.
Até mesmo Ernst Engel, um alfaiate de Hamburgo, procura semanalmente o Consulado Geral do Brasil naquela cidade preocupado com o trambique, porque os três alemães deixaram lá uma dívida de 1.899 marcos e sete shillings.
O Governo da Alemanha pressiona. O ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil, Aureliano Souza de Oliveira Coutinho, em Aviso do dia 16 de janeiro de 1841, solicita ao presidente da Província do Pará, Bernardo Souza Franco, informações sobre os três cidadãos e exige providências enérgicas e urgentes para localizá-los.
Todos os funcionários foram acionados para tentar encontrá-los. Ofícios vão-e-vem. Um deles, redigido com letras caprichosas de caderno de caligrafia, foi enviado pelo presidente da Província do Pará ao Comandante das Armas, com cópias à Thezouraria da Fazenda e ao Comandante da Força Naval em Belém, indagando sobre rastros dos alemães.
Ôpa! O ofício foi respondido. Encontraram uma pista. José Manoel Rangel de Carvalho, contador e escriturário da Thezouraria da Fazenda do Pará, vasculhando os arquivos daquela repartição pública, encontrou o Livro de Despesa da Caixa Militar nº 392, onde aparece o pagamento de salários nos meses de setembro, outubro e novembro de 1836 a um dos alemães: João Meissner.
Esta informação é comunicada no dia 8 de junho de 1841 ao chefe imediato, o inspetor de Fazenda Manuel Rodrigues D´Almeida. Daí é repassada em cadeia hierárquica ao presidente da Província do Pará, ao ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil, ao Consulado do Brasil em Hamburgo e, finalmente, ao governo alemão que não se conforma e exige mais detalhes. Isso foi trinta anos antes da unificação da Alemanha, que não tinha ainda seu Bundeskanzler.
A procura continua. Finalmente, o escrivão do Hospital Geral Militar do Pará, Ignácio Porfírio da Costa, obtém dados mais concretos. Consultando os livros de entrada do hospital, o zeloso funcionário encontrou nas folhas 2º e 31 que Meissner, o cabelo de fogo, entrou gravemente ferido no dia 17 de julho de 1838 e morreu dois meses depois. Wortmann, o tatuado, baixou hospital no dia 20 de outubro de 1837 e morreu em 5 de março de 1838. Quanto ao pisca-pisca Ulrich, ninguém sabe, ninguém viu.
Os cabanos: piroca-cana
Afinal, que diabos vieram fazer na Amazônia esses três gringos? Os três eram, na realidade, mercenários pagos pelo Governo do Pará com o dinheiro suado do contribuinte caboco para matar paraenses e amazonenses, guerreiros da Cabanagem, um movimento revolucionário que se alastrou por toda a Amazônia unindo índios, negros, tapuias e mestiços contra a opressão e a exploração da minoria de proprietários brancos.
Nessa época, a Província do Pará, que englobava o território do atual Estado do Amazonas, tinha 120 mil habitantes, dos quais 35 mil eram índios aldeados, 30 mil negros escravos, 40 mil mestiços e tapuias e apenas uns 15 mil brancos. Sem contar, é claro, os índios isolados que eram incontáveis.
Os cabanos tomaram o poder no dia 7 de janeiro de 1835. Mataram o presidente da província Lobo Souza. Seu corpo ficou exposto durante um dia inteiro e os cabanos desfilaram diante dele, cuspindo e chutando o cadáver. Depois de enterrado no cemitério da igreja das Mercês, em Belém, os cabanos ainda mijaram na cova. Era a vingança contra mais de 200 anos de miséria e humilhação, contra o “quadrilhão” antecessor do Jader Barbalho.
Olha só em que fria foram se meter os três alemães! Olha só!
Eles, na realidade, não eram três. Eram muitos. Faziam parte da Força Naval comandada pelo desertor da Marinha Britânica, John Taylor, que tinha duas divisões compostas por 460 soldados, todos eles mercenários alemães. Chegaram ao Pará no dia 25 de junho de 1835 em uma fragata, 20 escaleres, lanchões e outros barcos para garantir a posse do marechal-de-campo Manuel Jorge Rodrigues, nomeado presidente da Província do Pará.
Segundo dados do Inspetor da Fazenda, responsável pelo pagamento das tropas, os alemães fizeram parte do 1º Batalhão de Fuzileiros, composto por praças estrangeiros que, em 1836, sob o comando do major Fernando da Costa, saíram matando os cabanos como se fossem moscas.
A repressão foi brutal e sangrenta. Uma carnificina. Calcula-se que 40.000 pessoas morreram na Cabanagem. Entre eles Meissner, Wortmann e Ulrich, feridos de morte provavelmente em algum combate nos becos de Belém, onde cabanos de nomes sugestivos como Piroca-Cana, Mulato Fidelis, Preto, Zé Ourives, Chico Veado, Onça do Mato, Mãe da Chuva, lutavam com bordunas, facões, flechas, zarabatanas e todo tipo de porrete e cacete.
Meissner e Wortmann foram enterrados em Belém. Ulrich, o pisca-pisca, provavelmente atingido por alguma bordunada, teve seu cadáver atirado ao rio para alimentar as piranhas. Sequer morreram lutando por algo em que acreditavam.
Taqui tucupi
Quando os três saíram de Hamburgo ao encontro da morte em Belém, a Alemanha havia acabado de perder dois filhos ilustres: o filósofo Hegel e Goethe, poeta lírico. Mas os três mercenários dificilmente puderam fruir do prazer da leitura de “Fausto”, uma das maiores obras da literatura alemã, como sequer desconfiavam das leis fundamentais da dialética formuladas por Hegel. Será que seus ouvidos chegaram a ser acariciados por alguma cantata de Bach?
Pobres Meissner, Wortmann e Ulrich. Não puderam nem gastar o dinheiro do soldo que receberam para matar cabanos. Não desfrutaram da literatura, da música e do conhecimento produzido em sua pátria de origem. Devem ter morrido sonhando com joelho-de-porco, salada de arenque com pepinos e batatas, tendo por sobremesa apfelstrudel.
Sequer puderam aproveitar o melhor da Amazônia. Morreram sem se deliciar com a caldeirada de bodó, o doce de cupuaçu, o vinho de buriti, o açaí e o tacacá. Nos últimos dias de combate, a tropa passava fome, a Esquadra já não era mais abastecida com feijão, toucinho e carne salgada vindos do Rio de Janeiro, segundo queixas do almirante John Taylor, em ofício ao ministro da Marinha.
Os alemães, devotos de Santa Etelvina, se meteram numa briga que não era a deles e, ainda por cima, do lado errado. Teria sido melhor ficar mamando uma cervejinha em Hamburgo. Morreram o Cabelo-de-fogo, o Tatuado e o Pisca-pisca. Bem feito! O pescoço francês do prefeito! Lamentamos apenas o trambique dado no pobre alfaiate de Hamburgo. Será que os cabanos mijaram também na cova dos alemães?
Meninos, eu li os manuscritos com a história dos três alemães no Arquivo do Itamaraty, no Rio de Janeiro, que guarda documentação sobre a Cabanagem e sobre a história dos índios na Amazônia. A narrativa que aqui apresentei foi feita a partir da troca de correspondência entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros e a Província do Pará. Tudo está na papelada, menos o dado de que Ulrich era pisca-pisca. Isso eu inventei. Afinal, mais do que historiador, sou um fofoqueiro. Mas também, com um nome desses – Dorotheo Ulrich – o cara tinha de ser pisca-pisca, não tinha não?
P.S.1 – Para os historiadores sérios, que não gostam de fofocas, indico o Fundo “Correspondência” do Arquivo do Itamaraty e dentro dele a Série 16 – Correspondência com Governos, Repartições e Autoridades Regionais e Locais, com destaque para as sub-séries “Amazonas” e “Pará (1823-1899), que contém documentos sobre o Messianismo no Rio Negro, relatórios das Diretorias de Indios e dados sobre os mercenários estrangeiros na repressão à Cabanagem. Lá o pesquisador encontrará tudo que foi aqui narrado, menos o Pisca-pisca.
P.S. 2 – Versão ligeiramente modificada da crônica publicada em A CRITICA, de Manaus (11/051993) com o título de “Meninos, eu li”.