“Há sangue nesta vida / Há vida neste sangue / Há flor nesta vida / Há vida nesta vida”.
Eliane Potiguara – Tocantins de sangue, 2004
Terça-feira friorenta. Saio de casa em Niterói para dar aula na Uerj. São 5h45. Faz escuro. Mas eu canto? A manhã vai chegar com esse engarrafamento monstruoso? Tudo paralisado. Estou engasgado no viaduto, antes da praça do pedágio. Ligo o rádio. Alguém sequestrou um ônibus com 37 passageiros, agora atravessado na ponte e cercado por viaturas policiais. As informações são ainda imprecisas. Algumas pessoas descem de seus carros. Conversam. Estão tensas. Não há previsão de liberar o trânsito. Envio mensagens por WhatsApp a meus alunos, suspendendo as aulas.
Depois de duas horas de espera, a ponte continua interditada, mas uma pista no sentido contrário é liberada para quem quer sair do gargalo. Retorno. Já em casa, acompanho pela TV. A polícia negocia. Seis reféns são liberados. A negociação é interrompida pelo governador Wilson Witzel (PSC – vixe vixe), que monitorou tudo através de aplicativo de celular. Ele autoriza os disparos. Um atirador de elite do BOPE mata o sequestrador. Num espetáculo deprimente que envergonharia qualquer nação civilizada, Witzel desce de um helicóptero e se exibe diante das câmeras de TV, de punhos fechados, comemorando a morte.
Quem era o sequestrador morto chamado de “criminoso” pelo governador do Rio? William Augusto da Silva era um menino: tinha apenas 20 anos. De família pobre: a mãe Renata Paula da Silva, merendeira e o pai José Rinaldo da Silva, padeiro. “Era um bom filho, mas extremamente depressivo” disse a major Fabiana Silva, que comanda a Secretaria de Vitimização do Rio, depois de conversar com a mãe, que tinha consciência do transtorno mental temporário do filho. “Ele não tinha amigos. Vivia enfurnado no telefone, na internet e usava remédios controlados” – contou um primo.
A empatia
Bastou uma postagem nas redes sociais, questionando a morte de William, para gerar uma guerra de palavras, com tiros de adjetivos, substantivos e verbos de lá e daqui.
– Vocês são uns esquerdopatas. A morte do “criminoso” foi para salvar vidas. Quero ver se o filho ou a filha de um de vocês estivessem dentro do ônibus, se seriam tão bonzinhos assim.
E aí? Esse parece ser um argumento forte, de peso. Lembro que há meio século, em plena ditadura, o estudante Edson Luís foi assassinado pela polícia. O enterro saiu da Cinelândia. Fomos a pé até o cemitério em Botafogo e, no caminho, as pessoas acenavam das janelas dos edifícios, nos apoiando, quando gritávamos:
– Mataram um estudante. E se fosse um filho seu? Mataram um estudante. E se fosse um filho seu?
Era um apelo para cada um se colocar no lugar do outro, do morto e de sua família. No entanto, no caso deste sequestro, essa empatia que permite compartilhar temores, dores e sofrimento, parece ser incompleta. Teria de ser estendida também a outra pessoa dentro do ônibus que foi excluída. E se o seu filho fosse o William, você concordaria com os disparos mortais ou insistiria na negociação?
Se a polícia tivesse tanta pontaria e habilidade na negociação como teve com o sniper, era possível salvar a vida do menino. Bastava trazer a mãe dele ou a professora, como ocorreu em Manaus, em junho de 1967, quando o Petel subiu num poste de iluminação do Estádio da Colina e diante de 12 mil pessoas ameaçou fazer e acontecer. Chamaram sua mãe, dona Geraldina, que chegou e botou ordem na casa. Outro precedente foi a professora que impediu seu aluno armado de assaltar um ônibus da Linha 388 Carioca-Santa Cruz. (Ver “Todo prefeito é Wandernilson”)
Menino calado
William portava um revólver de brinquedo, uma arma de choque e uma faca, além de uma garrafa PET cheia de combustível. Um dos reféns do ônibus, o professor de geografia Hans Moreno, disse que o sequestrador não pretendia incendiar o veículo, que jogou fora o isqueiro para a polícia ver, que tranquilizou a todos dizendo que não ia machucar ninguém, nem roubar nada, que só queria entrar para a História e que permitiu que cada passageiro usasse seu celular para se comunicar com a família. Lá fora, ninguém estava sabendo disso, o que aumentava a tensão sobre o desenlace final.
– Ele estava com um rádio transmissor, e escreveu o número da frequência no vidro do veículo, para entrar em contato com a polícia. A todo momento, de forma calma, Willian pedia para a polícia “tomar cuidado para os passageiros não se machucarem” – contou o professor.
A professora de William numa escola pública de São Gonçalo disse a uma jornalista que ele era “um menino calado e arredio”, que era “muito introvertido”, que não gostava de ir pro recreio, ficando sempre dentro da sala e que “era uma pessoa que gritava por ajuda desde a adolescência”
– “Ainda não consegui digerir. Porque eu sei que ele não era uma pessoa ruim. Infelizmente o que aconteceu poderia ter sido evitado se ele tivesse recebido toda a ajuda que o ser humano precisa pra encontrar o equilíbrio e aguentar as pressões da vida” -, disse a professora, segundo o relato da produtora do RJTV, Amanda Prado.
William nunca matou uma mosca, não era um “criminoso” como o classificou o governador esfregando as mãos tintas de sangue. Não precisava de balas, mas de atenção, de cuidados médicos.
– Ele era um louco perigoso – retrucam os “direitopatos”, como se loucos devessem ser exterminados pela polícia, que é paga pelo contribuinte para zelar pela vida de todos. Parecem incomodados com os “esquerdopatas”, que encontraram sinais de vida naquele sangue derramado.
Suicídio por policial
O governador Witzel, ex-fuzileiro naval e ex-juiz federal, foi censurado por uns e aplaudido por outros devido à celebração da morte. Diante das críticas da mídia, desconversou: – Não pude me conter – disse. Mudou o tom do discurso, jurando que celebrava as vidas poupadas, como se a vida de William não fosse também vida.
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro – aquele das conversas reveladas pelo Intercept – parabenizou os policiais. O presidente Jair Bolsonaro – aquele amigo do Queiroz desaparecido – se regozijou afirmando que “não tem que ter pena do sequestrador”. O senador Flávio Bolsonaro – aquele investigado por comprar imóveis no Rio para lavar dinheiro – apresentou um projeto de lei que altera o Código Penal para incluir mortes como a de William como “suicídio por policial”, uma contribuição esdrúxula do Brasil ao direito internacional.
Os quatro podem vestir a camisa da loja online do empresário Lucas Nunes, cuja estampa celebra a morte do sequestrador: Grande Dia..
Enquanto isso, nós, os “esquerdopatas”, assistimos os “direitopatos” mandar nossa humanidade pelo ralo.
P.S. – A Amazônia está em chamas. Ia escrever sobre o tema, mas a morte do William não deixou.
Ver também: 1) Todo prefeito é Wandernilson e Alô alô Realengo, http://www.taquiprati.com.br/cronica/1056-todo-prefeito-e-wandernilson