O que advogo é um homem plural, munido de um idioma plural. Ao lado de uma língua que nos faça ser mundo,
deve coexistir uma outra que nos faça sair do mundo (Mia Couto – A língua que não sabemos que sabíamos).
Fronteiras – esse foi o tema escolhido pela Associação Junguiana do Brasil para o seu XXIV Congresso Nacional que se realizou de 24 a 27 de agosto em Foz do Iguaçu (PR), justamente onde Brasil, Argentina e Paraguai se separam e se encontram. Falou-se das linhas divisórias dos territórios, do pensamento, do corpo, da natureza, da cultura, das línguas. Houve recital de piano, exposição de fotos, oficinas, mesas-redondas, lançamento de livros. No encerramento, a antropóloga Edilene Coffaci de Lima discutiu como se estabelecem fronteiras.
Numa das mesas coordenada por Lygia Fuentes, do Instituto Junguiano do Rio de Janeiro (IJRJ), o médico e analista Walter Boechat abordou as “Novas Perspectivas na Fronteira Corpo-Mente” e este locutor que vos fala discorreu sobre “Fronteiras e Línguas em Contato”. Peço licença aos demais palestrantes para centrar aqui o foco no caso de Werá Kuaray apresentado na minha fala, iniciada com citação de Mia Couto, para quem “precisamos de um idioma que nos crie raiz e lugar”, mas também de outro “que nos faça ser asa e viagem”. Tal proposta implica a delimitação de fronteiras entre línguas.
Foi por essas fronteiras que transitou nos últimos anos um menino guarani que eu conheço bem. Para preservar sua privacidade, omito o nome com que é registrado na escola e uso Werá Kuaray (Brilho do Sol) com que é conhecido na aldeia Tekoá Porã (Aracruz – ES), onde nasceu e na aldeia Porto Lindo (Japorã – MS) para onde se mudou. Sua experiência ilustra, de um lado, como as fronteiras linguísticas podem ser porosas, flexíveis e negociáveis, e de outro como elas podem se tornar rígidas e intransponíveis, dependendo do poder político ou dos agentes encarregados de delimitá-las.
O “I” de Ipanema
Quando Werá Kuaray completou quatro anos, seu pai guarani, aluno na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, levou a família, em 2012, para residir no município de Seropédica (RJ). O menino, monolíngue em guarani, foi matriculado em horário integral no Centro Municipal de Educação Infantil Irene de Albuquerque do município de Seropédica (RJ). Olhem só o que aconteceu.
Durante o processo de adaptação na creche, a criança encontrou dificuldades para se comunicar. Logo no primeiro dia, se dirigiu à professora e falou:
– Y, y, y.
Foi levado ao banheiro, porque entenderam que ele queria fazer xixi. Na realidade, estava pedindo água em guarani (a mesma água que molhou palavras como Yguaçu, Ypanema, Ycaraí). Desfeito o equívoco, com ajuda do pai e por iniciativa da professora, a Escola criou um pequeno glossário guarani e trabalhou o léxico com as crianças monolíngues em português, contribuindo para a inclusão de Werá, mas especialmente envolvendo no mundo guarani seus colegas, que tomaram conhecimento de outra língua falada no Brasil e cruzaram a fronteira entre elas. Bendita professora, abridora de cancelas!
A iniciativa gerou o projeto “A contribuição dos índios para a formação da cultura brasileira”, que incluiu palestras e música Guarani na escola. Werá cantou, feliz, a música Nhamandu Mirim, com seus coleguinhas da creche que aprenderam a musicalidade de uma língua indígena falada hoje em mais de 100 municípios brasileiros e também no Paraguai, na Argentina e na Bolívia. A diversidade, vista quase sempre pela escola como obstáculo – a escola adora o uniforme – passou a ser aqui um recurso pedagógico para avançar no conhecimento da aventura da existência humana.
A escola de Olaria
No entanto, essa ponte construída foi dinamitada nas outras duas escolas para as quais Werá foi transferido, uma no bairro de Olaria, na cidade do Rio e a outra no município de Tanguá, onde a família reside até hoje. O que aconteceu lá pode ser acompanhado em quatro relatórios diferentes, nos quais vou me basear, complementando com conversas tidas com os pais e na visita feita a uma das escolas pela equipe do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ.
Na cidade do Rio, segundo o Censo do IBGE (2010), vivem mais de 17 mil índios dispersos por bairros e favelas. Portanto, o caso de Werá é similar ao de muitos outros índios deslocados para a cidade, que se tornou um cemitério de línguas indígenas. Ele frequentou durante um ano a escola em Olaria. Lá, a primeira recomendação da nova professora foi que o pai não falasse mais em guarani com o filho. Quando Werá abria a boca, a professora exigia que falasse “certo”, “normal”, “como todo mundo”, ou seja, em português.
O relatório de avaliação registra que “o aluno é novo na Unidade Escolar nesse ano de 2013, é descendente de índios e veio de uma tribo onde a língua materna era o Guarani, assim demonstra dificuldades em se fazer entender, pois fala muito enrolado e na língua dele. Não compreende muitas atividades, não demonstra interesse. Abaixa a cabeça, permanece horas olhando para o nada, rabisca a folha, ou deixa a folha parada sem fazer nada. Até nas brincadeiras, pouco se mistura, muitos colegas não conseguem entender o que ele fala. Ao ser solicitado a recontar uma história ouvida, não se faz entender, tornando difícil a produção oral”.
O Relatório finaliza com uma recomendação: “O aluno cursará o 1º ano do Ciclo Inicial em 2014 e necessitará de um trabalho paralelo para poder acompanhar o conteúdo da alfabetização, além de treinar a língua portuguesa fora da escola”.
A escola de Tanguá
No ano seguinte, a família muda para Tanguá (RJ) que é, ironicamente, uma palavra do guarani antigo. No “formigueiro” da escola ninguém sabia o que fazer com o novo aluno. Werá foi incluído na turma de alfabetização. Devido a dificuldades de comunicação, a professora o encaminhou ao Centro Integrado de Saúde e Educação, para, em princípio, ser atendido no contra turno por psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, o que ocorreu de forma precária, sem qualquer resultado. Os profissionais de diferentes áreas não estão preparados para transitar por tais fronteiras.
Uma equipe do Proindio da Faculdade de Educação da UERJ, em reunião com a Secretária Municipal de Educação de Tanguá, explicou a condição de falante de guarani de Werá e a necessidade de se adotar estratégias para a aquisição do português como segunda língua. Ele foi incluído na turma de alfabetização e passou a fazer exercícios de coordenação motora fina e grossa, a cobrir nome com pontilhado. No entanto, diagnosticado como “fora da norma”, foi deslocado para um “pequeno curral” no fundo da sala, onde uma mediadora trabalhava com outra aluna com déficit cognitivo. No último mês a mediadora entrou de licença e a professora aconselhou que Werá ficasse em casa.
A professora regente assinou três relatórios bimestrais em abril, julho e setembro de 2014. Faço aqui um resumo do conteúdo. Ela registra que Werá “encontra-se no nível pré-silábico, ainda não reconhece o alfabeto, precisa do auxílio da professora para identificar letras e números, ainda não produz textos. Gosta muito de pintar, prefere pintar com hidrocor, pois as cores são mais vivas. Está sendo difícil avaliar o aluno devido à dificuldade de comunicação. Ele apresentou pouco avanços”.
Veio então o golpe mortal: “Embora alguns dias o aluno chegue à sala alegre com abraços na professora, em outros chega mal humorado e se isola do ambiente ao redor. Senta em sua cadeira e fica olhando para o teto ou entra embaixo da mesa da TV e lá permanece até o fim da aula. Muitas vezes parece se desligar da realidade. Algumas vezes fala de um jeito que não conseguimos entendê-lo, talvez na língua indígena. Não solicita ajuda da professora quando necessário, não se comunica, não brinca com os colegas, se recusa a fazer as tarefas em sala, se esconde debaixo da mesa e demonstra certa agressividade”.
Agressividade certa
A criança manifesta certa agressividade ou agressividade certa? Depois desse relatório contundente, Werá foi diagnosticado como “autista” por quem não tem competência para isso. Seus pais protestaram e foram ameaçados de serem denunciados ao Conselho Tutelar. Filmaram, então, Werá em casa, brincando com as três irmãs. Eu vi. Procuraram médicos de dois hospitais universitários: da UERJ e da UFF, ambos descartaram o autismo. Não é um caso patológico, mas de tratamento inadequado para ultrapassar as fronteiras das línguas. Quem padece de autismo pedagógico é a escola, que não respeita os direitos linguísticos garantidos pela Constituição de 1988, se isola, agride quando busca alfabetizar a criança numa língua que não é a dela e na qual não se expressa oralmente com fluência.
Acontece que da mesma forma que Werá guarani, existem milhões de brasileirinhos que chegam à escola, falando segundo regras de variedades populares e são humilhados, porque se estabeleceu fronteiras rígidas no jeito de falar. Dessa forma, as crianças são levadas a se envergonhar das variedades consideradas “erradas”, um verdadeiro bullying coletivo. Com essa atitude inquisitorial boicotam qualquer possibilidade de apropriação, nessas condições adversas, da “certa variedade” considerada “variedade certa”. O respeito ao jeito de falar do aluno é uma condição para criar um ambiente acolhedor e propício à aprendizagem da norma dita culta. Tolerância e respeito à diversidade. Como na escola de Seropédica. Só isso.
O modelo educativo dominante, que prega o unilinguísmo, representa um exemplo de intolerância Nessas circunstâncias, o bilinguismo é, como regra geral, uma forma de transitar entre fronteiras, de conhecer o outro, que reside no outro lado da fronteira linguística. « Ali onde não existe o « outro », onde não existe ainda, cessa toda possibilidade de consciência » – escreveu Jung citado por Humbertho Oliveira e por Fabiana Binda na mesa que discutiu « o lócus fronteiriço, identidade e alteridade » e onde, de uma certa forma, Werá Kuaray esteve presente.
O padre Montoya, jesuíta, autor do primeiro dicionário guarani no séc. XVII, vai na mesma direção, quando escreve que ali onde tem um dicionário bilingue, portas são abertas para resolver conflitos e tensões. Conclui minha fala citando o Diccionario Trilingue del Mercosur Español, Guarani, Portugues, editado em 2011, em Assunção. Trata-se não só de uma produção lexicográfica, mas de uma ponte ou pelo menos de uma pinguela, para conhecer quem reside no outro lado da fronteira linguística.
A memória de uma longa história de contato está também documentada no dicionário de português de Antônio Houaiss que registrou 228 mil verbetes, dos quais cerca de 45 mil são palavras oriundas de línguas indígenas. A língua guarani, por seu lado, também incorporou marcas do português, como uma evidência de que as fronteiras entre línguas em contato são porosas. Transitar por elas é mais saudável do que um diagnóstico equivocado de autismo emitido por guardiães de fronteira que se recusam em abrir a cancela. Foi isso que Werá Kuaray veio fazer na Associação Junguiana do Brasil convidado por Jorge Antônio Jorge, Renata Wenth, Lourdes Sanchez, Suzana Lyra e demais membros da Comissão Organizadora do XXIV Congresso.
Fotos de: Tupã Ray (o cineasta Alberto Alvares), de Paula Boechat e outra retirada da página do XXIV Congresso da AJB