Em primeiro lugar, sem qualquer sombra de dúvidas, os valores cobrados no Amazonas são os mais altos do país, chegando a superar os constantes da tabela de São Paulo e, para não ir muito longe, os de Roraima, conforme eu já comprovei em outros posts aqui mesmo nesse blog.
Em segundo lugar: os valores cobrados são completamente desproporcionais aos custos do serviço prestado pelos tabeliães e registradores, o que implica em grave desrespeito ao que determina o artigo 145, inciso II, da CF/88.
É que, segundo o STF, os emolumentos são tributos da espécie taxa e, sendo assim, somente podem ser cobrados em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição (CF, art. 145, II).
Assim, segundo a doutrina praticamente unânime e a jurisprudência pacífica do STF, deve haver uma indispensável correlação entre o valor cobrado a título de emolumentos (taxa) e os custos dos serviços prestados pelos tabeliães e registradores, exatamente o que não vem ocorrendo no Amazonas.
Ademais, ao contrário do que ocorre com os impostos (tributos não vinculados), as taxas não podem ter função arrecadatória, pois são vinculadas a uma atividade pública, devendo se limitar a compensar o Estado pelos gastos necessários à prestação dos respectivos serviços, tudo em nome da retributividade que é peculiar a esse tipo de tributo.
Registre-se que, conforme já foi dito acima, a jurisprudência do STF é pacífica quanto a isso. Confira-se, a propósito, o seguinte julgado da nossa Suprema Corte:
TAXA: CORRESPONDÊNCIA ENTRE O VALOR EXIGIDO E O CUSTO DA ATIVIDADE ESTATAL:
A taxa, enquanto contraprestação a uma atividade do Poder Público, não pode superar a relação de razoável equivalência que deve existir entre o custo real da atuação estatal referida ao contribuinte e o valor que o Estado pode exigir de cada contribuinte, considerados, para esse efeito, os elementos pertinentes às alíquotas e à base de cálculo fixadas em lei.
Se o valor da taxa, no entanto, ultrapassar o custo do serviço prestado ou posto à disposição do contribuinte, dando causa, assim, a uma situação de onerosidade excessiva, que descaracterize essa relação de equivalência entre os fatores referidos (o custo real do serviço, de um lado, e o valor exigido do contribuinte, de outro), configurar-se-á, então, quanto a essa modalidade de tributo, hipótese de ofensa à cláusula vedatória inscrita no art. 150, IV, da Constituição da República.Jurisprudência. Doutrina. (STF, Pleno, ADI 2.551-MG, Medida Cautelar, rel. Min. Celso de Mello, j. 02/04/2003, DJ 20/04/2006).
Assim, diante das premissas adotadas pelo referido precedente do STF, indaga-se: qual o custo real dos serviços prestados pelos tabeliães e registradores de imóveis no Amazonas? Está havendo uma equivalência razoável entre o valor desses custos e o valor que está sendo cobrado dos contribuintes?
Quanto à primeira pergunta, infelizmente, ainda não se tem resposta, mas nada impede que se faça uma perícia contábil, na via judicial, para se chegar ao real montante dos custos dos serviços prestados pelos tabeliães e registradores no Amazonas.
No entanto, mesmo sem essa resposta, considerando-se os dados constantes do site do CNJ[1], segundo os quais alguns cartórios de registro de imóveis e de notas, em Manaus-AM, somente no ano de 2018, arrecadaram, respectivamente, em valores brutos, R$ 12.411.530,00 (mais de doze milhões de reais) e R$ 3.115.859,02 (mais de três milhões de reais), já se pode supor que existe alguma discrepânciaentre o valor dos custos e o valor cobrado pela prestação dos serviços, em possível violação ao que determina o artigo 145, II, da CF/88.
Não se pode esquecer, por outro lado que, apesar de se tratar de atividade delegada a particulares, o serviço prestado pelos tabeliães e registradores de imóveis é público e, exatamente por isso, é remunerado através de taxa, espécie tributária que, conforme já se demonstrou, é cobrada apenas para compensar os custos referentes ao serviço prestado, não podendo ter finalidade arrecadatória.
No entanto, obviamente, se a Carta Magna delegou tais atividades aos particulares, o valor das taxas em questão deve ser suficiente para compensar os custos do serviço e, também, para remunerar os delegatários (titulares dos cartórios), mas sem que, para isso, deva ser sacrificado o patrimônio dos contribuintes, através de cobrança de valores desproporcionais e, até mesmo, confiscatórios, como vem ocorrendo atualmente.
Nesse sentido, novamente, confira-se a jurisprudência pacífica do STF:
A GARANTIA CONSTITUCIONAL DA NÃO-CONFISCATORIEDADE:
O ordenamento constitucional brasileiro, ao definir o estatuto dos contribuintes, instituiu, em favor dos sujeitos passivos que sofrem ação fiscal dos entes estatais, expressiva garantia de ordem jurídica que limita, de modo significativo, o poder de tributar de que o Estado se acha investido. Dentre as garantias constitucionais que protegem o contribuinte, destaca-se, em face de seu caráter eminente, aquela que proíbe a utilização do tributo – de qualquer tributo – com efeito confiscatório (CF, art. 150, IV).
(…)
TRIBUTAÇÃO E OFENSA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE:
O poder público, especialmente em sede de tributação, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade, que traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo.
O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público.
O princípio da proporcionalidade, nesse contexto, acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais.
A prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental constitucionalmente assegurados ao contribuinte. É que este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos editados pelo Estado. (STF, Pleno, ADI 2.551-MG, Medida Cautelar, rel. Min. Celso de Mello, j. 02/04/2003, DJ 20/04/2006).
Essa decisão do STF se amolda perfeitamente ao quadro atual do valor cobrado, a título de emolumentos, pelos tabeliães e registradores de imóveis, uma vez que os mesmos são tão altos que somente podem ser pagos se os contribuintes abrirem mão dos gastos necessários à própria subsistência, comprometendo, assim, o mínimo existencial, o que só vem a confirmar a irrazoabilidade, desproporcionalidade e o caráter confiscatório dessas taxas.
Mas não é só isso!
Como se não bastassem os valores já desproporcionais, os tabeliães e registradores de imóveis do Amazonas ainda repassam aos usuários de seus serviços os valores referentes ao ISS (imposto do qual são os verdadeiros contribuintes!), taxas de uso de computador e taxas referentes a diversos fundos que, por lei, não podem ser repassados aos contribuintes. Basta conferir a tabela de emolumentos.
É que, a segundo expressa determinação da CF/88 (art. 236, § 2º), cabe à Lei Federal estabelecer normas gerais para a fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro, lei essa que já existe, no caso, a Lei Federal nº 10169/2000.
No entanto, antes mesmo da entrada em vigor da CF/88, já existia a Lei Federal nº 6.941/1981 que, sem dar margem a qualquer dúvida, assim dispunha:
Art 3º. É vedado incluir ou acrescer, às custas dos Registros Públicos, quaisquer taxas ou contribuições.
Assim, segundo o referido dispositivo legal, que foi recepcionado pela CF/88, não se pode cobrar do usuário dos serviços dos cartórios de notas e de registro de imóveis nada além do valor dos emolumentos, de modo que são ilegais os repasses, ao contribuinte, de quaisquer taxas ou contribuições.
Mas, voltando à Lei Federal nº 10.169/2000, é importante transcrever alguns dos seus principais artigos:
Art. 1o Os Estados e o Distrito Federal fixarão o valor dos emolumentos relativos aos atos praticados pelos respectivos serviços notariais e de registro, observadas as normas desta Lei.
Parágrafo único. O valor fixado para os emolumentos deverá corresponder ao efetivo custo e à adequada e suficiente remuneração dos serviços prestados.
Art. 2o Para a fixação do valor dos emolumentos, a Lei dos Estados e do Distrito Federal levará em conta a natureza pública e o caráter social dos serviços notariais e de registro, atendidas ainda as seguintes regras:
I – os valores dos emolumentos constarão de tabelas e serão expressos em moeda corrente do País;
II – os atos comuns aos vários tipos de serviços notariais e de registro serão remunerados por emolumentos específicos, fixados para cada espécie de ato;
(…)
Art. 3o É vedado:
(…)
III – cobrar das partes interessadas quaisquer outras quantias não expressamente previstas nas tabelas de emolumentos;
O exame dos artigos 1º e 2º, da Lei Federal nº 10169/2000, deixa patente que o legislador estadual não tem liberdade absoluta no que se refere à fixação dos valores dos emolumentos, eis que a) deverá observar as normas gerais dessa lei (art. 1º, caput); b) o valor dos emolumentos deverá corresponder ao efetivo custo (art. 1º, § único) e c) deverá haver a adequada e suficiente remuneração dos serviços prestados (art. 1º, § único).
Percebe-se a preocupação da Lei Federal nº 10.169/2000 em ver cumprida a correlação que deve existir entre o valor dos custos do serviço e o valor cobrado, a título de emolumentos, conforme impõe o artigo 145, II, da CF/88.
Também se preocupa a referida lei federal com remuneração dos serviços prestados pelos tabeliães e registradores, a qual deverá ser adequada e suficiente, jamais exorbitante, irrazoável, desproporcional e, consequentemente, confiscatória, como vem ocorrendo no Amazonas.
Por sua vez, o artigo 3º, da Lei Federal nº 10.169/2000, expressamente, proíbe que os tabeliães e registradores de imóveis cobrem das partes interessadas quaisquer outras quantias não expressamente previstas nas tabelas de emolumentos.
Para que se possa entender o alcance do dispositivo em exame, é necessário mencionar que, seguindo as determinações gerais da referida Lei Federal nº 10.169/2000, foi editada, no âmbito estadual, a Lei Estadual nº 2.751/2000, da qual passo a transcrever alguns artigos de enorme importância:
Art. 5º Sob pena de responsabilidade e infração disciplinar prevista na Lei Federal nº 8.935, de 18.11.94 (Capítulo IV, arts. 31 a 36), e sem prejuízos de outras cominações legais, é vedada a exigência ou a cobrança de emolumentos não previstos nesta lei pelos Notários e Registradores e agentes públicos aos mesmos equiparados, ou, em valores superiores aos legalmente fixados, sendo-lhes, ainda, vedado:
I – repassar aos usuários as despesas decorrentes de seus serviços, a qualquer título ou pretexto;
(…)
Art. 12. Os Notários e os Registradores de Imóveis, de Protesto de Letras e de Títulos e Documentos da Comarca de Manaus, ficam obrigados a contribuir mensalmente, a partir da vigência desta Lei, com o equivalente a 3% (três por cento) de suas respectivas receitas operacionais, vedado o repasse aos usuários de seus serviços, para a formação de um Fundo, a ser gerido e fiscalizado pela Corregedoria Geral de Justiça, destinado a compensar os Registradores de Pessoas Naturais desta Capital, pela gratuidade dos registros de nascimento e óbitos, e fornecimento das respectivas primeiras certidões determinados por lei federal.
Conforme se pode inferir do exame da Lei Estadual nº 2.751/2000, a qual respeita as diretrizes gerais impostas pela Lei Federal nº 10.169/2000, sob pena de responsabilidade e de infração disciplinar, os tabeliães e registradores de imóveis não podem repassar aos usuários as despesas decorrentes de seus serviços(art. 5º, inciso I), o mesmo se aplicando aos percentuais referentes aos fundos dos quais são os contribuintes (artigo 12).
Portanto, da conjugação do que dispõem a Lei Federal nº 6.941/1981, a Lei Federal nº 10.169/2000 e a Lei Estadual nº 2.751/2000, os usuários dos serviços prestados pelos tabeliães e registradores de imóveis somente devem pagar pelos emolumentos, não havendo lugar para o acréscimo de valores referentes ao ISS, taxas de computador e demais taxas (percentuais de fundos), os quais são de total responsabilidade dos titulares dos cartórios.
Finalizo o presente artigo deixando claro que não tenho absolutamente nada contra os titulares de cartórios de notas e de registros de imóveis, até porque conheço alguns e, inclusive, tenho amizade com vários deles. Não há nada de pessoal, definitivamente. Aqui eu estou atuando no exercício da cidadania.
O que se pretende, obviamente, não é que os titulares de cartórios trabalhem de graça, mas que o valor cobrado a título de emolumentos corresponda ao efetivo custo dos serviços prestados e seja adequado e suficiente para a remuneração dos notários e registradores, conforme determina o artigo 1º, § único, da Lei Federal nº 10.169/2000, mas sem inviabilizar os direitos fundamentais dos contribuintes(propriedade, patrimônio e mínimo existencial).
Espero estar contribuindo para o saudável debate sobre o tema e que isso possa (quem sabe um dia) mudar esse panorama tão desfavorável aos cidadãos do nosso querido Amazonas.