Invertamos a sentença notável de Clausewitz (Vom Kiege/Da Guerra), para afirmar que a política é a guerra por outros meios. Uma e outra estão subordinadas a uma estratégia (o que se procura conquistar) sustentada em ações táticas (o que fazer) necessariamente servidoras do objetivo final. No curso da peleja as táticas podem mudar e os aliados ser trocados.
Na guerra, as batalhas raramente cumprem o roteiro previamente traçado pelos estados-maiores. Já a política (mais precisamente aquilo que Gramsci chamava de a ‘pequena política’ e é disso de que se trata na cena brasileira) é a “arte” do possível, da maleabilidade, da resiliência e do contorcionismo, conquanto que o grande objetivo – a conquista ou mantença do Poder –, seja garantido.
Para esse efeito, os fins justificam os meios, e os meios variam segundo a elasticidade ética do sujeito. Na guerra e na má política. Eis o que as unifica. A guerra é, por definição, a barbárie, e a política raramente é a arte do bem comum. Há casos, mesmo, de absoluta ausência de limites; é quando a política fica a serviço do arrivismo e os interesses do Estado, o bem-público, o interesse coletivo sucumbem como figuras de uma retórica “para inglês ver”.
Vargas, considerado por gregos e troianos como o mais hábil (e por isso mesmo o mais longevo) de nossos políticos-estadistas, desenvolveu como ninguém o ir e vir, o somar e o dividir. E, na vida, transitou da ditadura para a democracia. Atribui-se à sua verve a afirmação segundo a qual, na política, “não podemos ter amigos tão íntimos que com eles não possamos romper, nem inimigos com os quais não possamos nos reconciliar”. É a arte que admite a perda dos anéis como preço para a preservação dos dedos (no caso, representando o poder).
Seu arquiinimigo, Carlos Lacerda, levou a sentença ao paroxismo. Líder civil do golpe de 1964, mas incompatibilizado com os militares, vai procurar salvação na aliança com os destratados da véspera, Juscelino Kubitscheck e João Goulart, sem se sentir no dever de fazer a autocrítica das ofensas, das mentiras e das infâmias. De certa forma dizia para seu eleitorado e seguidores: esqueçam o que fui (mais tarde outro político diria “esqueçam o que escrevi”).Sua frustrada Frente Ampla tinha por objetivo reunir os diferentes que, por razões distintas (ideológicas, políticas, morais etc.), enfatize-se, lutavam contra o regime castrense.
É o exemplo de um bom fim absolvendo todos os meios, bons e maus. Lincoln, o estadista modelo, viveu a um só tempo a guerra e a política. Para obter da Câmara dos Representantes a aprovação da medida que abolia a escravatura, mentiu para os congressistas e prorrogou a miséria da guerra civil. Mas seu objetivo era humanista e meritório. O que a história registrou foi o fim da escravidão e a vitória do Norte sobre os reacionários do Sul.
Essas reflexões deitam olhar sobre o novo Congresso empossado em 1.º de fevereiro, e, nele, particularmente, sobre a nova Câmara Federal e seu novo presidente que tão bem a representa, como a imagem de um espelho. A nova legislatura confirma a sentença de Ulisses Guimarães, que tanto conhecia o poder que liderou por muitos anos: “a próxima Câmara será [sempre] pior do que a anterior”. A agravada tendência conservadora da legislatura recém inaugurada era a única certeza de que dispunham os especialistas em antecipações do óbvio.
O domínio ético-político do chamado “baixo-clero” anunciava, com mais segurança que os informes meteorológicos, a vitória do líder Eduardo Cunha, bem calçado por anterior e bem calculado acordo com os jornalões, objetivado no compromisso de impedir a tramitação de qualquer iniciativa – governamental ou não – que vise a regulamentar a ação das empresas proprietárias de meios de comunicação sujeitos a concessões públicas, regulamentação, aliás, cobrada pela Constituição de 1988 (v. Artigos 220 e segts).
Relativamente à reforma política, as posições, do presidente Cunha, são as piores possíveis, derivando do livre financiamento empresarial das eleições, via contribuições aos candidatos e partidos, ao “distritão” do saudoso Michel Temer (alguém sabe por onde anda ele em meio a tanta turbulência?), pelo qual desaparece a representação proporcional, desaparecem os partidos (que tal uma democracia representativa sem partidos?) e as minorias são condenadas ao silêncio.
A reação da grande imprensa é de entusiasmo diante de suas primeiras iniciativas – Ah! como a história nos prega peças! – tidas como moralizantes daquela Casa pouco respeitada, que respeitada agora precisa ser, para o que der e vier. E pode vir muita coisa. “Teremos sessões nas tardes das quintas-feiras”, exclama o grande jornal, como se nuniasse a salvação da República.
Representante do conservadorismo, vocalizando o atraso ideológico do fundamentalismo pentecostal mais primitivo, que manipula, Eduardo Cunha, no entanto, representa acima de tudo os interesses avançados do capitalismo financeiro, trafegando, lépido e fagueiro, à vontade, senhor de si, pelos meandros da Avenida Paulista. Para esse mister ele é confiável – politico urbano e fluminense – o que não ocorre com seu colega Renan Calheiros, nordestino vinculado à decadente economia açucareira, em síntese, um político provinciano; e já não é promessa de poder o atual vice-presidente da República, com data certa para ser sacado da política. Já se lhe cobram a saída da presidência do PMDB, o que poderá conceder em proveito do projeto maior, que, sabe, não comandará.
O projeto de Cunha, se originalmente respondia tão só a uma ambição pessoal, então tida como desmedida, transforma-se em projeto prioritário das forças conservadoras que entreveem a possibilidade de retomar o controle da política e do que, com esse controle, se transforma em mera consequência. Cansado do ‘amadorismo’ do PSDB e quejandos, voltam-se também significativos segmentos do Brasil moderno – a banca, os grandes meios de comunicação segmentos contrariados do mundo industrial, crescentes camadas da classe média urbana mobilizadas para o moralismo– para o PMDB velho de guerra e sua comprovada capacidade de conviver com o Poder, que bem sabe controlar e usufruir como nenhum outro partido.
Cunha foi pinçado graças à sua inegável competência como articulador, sua dedicação aos objetivos a que se traça, sua convicção de que os fins justificam os meios. Ele é instrumento e sujeito de um projeto de poder do qual é o artesão mais ostensivo, mas não o único, até porque essa artesania compreende muitos segmentos, para além do estamento político e político-parlamentar. Nesse sentido, a presidência da Câmara Federal é o primeiro degrau dos muitos que ambiciona (a direita é seu corrimão), que pode costurar para si pessoalmente ou para outrem, não importa, conquanto que os interesses que representa sejam dominantes.
Neste sentido e para esses efeitos, Cunha já supera Michel Temer e, aliando-se a Renan Calheiros, nada mais nada menos que o presidente do Congresso Nacional, terá conformado a nova correlação de forças do PMDB, e, de resto, da República claudicante. Cunha não é mais, portanto, um quadro do ‘baixo clero’ em ascensão, mas o mais poderoso político brasileiro depois da Presidente da República (e com as mãos mais livres que as da Presidente). É a nova cara do ‘novo’ PMDB decidido a manobrar diretamente o Poder como senhor e sujeito, e não mais sob as asas do PT. Para tanto todos estão dispostos a vender a alma ao diabo.
Na guerra é desanimador para o general comandante da batalha a descoberta de que seus inimigos estão dos dois lados da linha de fogo. Mas, certamente, pior ainda é descobrir que seus comandados perderam o ânimo do combate. O mesmo se aplica à política, e aos partidos quando suas militâncias arrefecem na luta. O general fica sem condições de defender sua cidadela e enfrentar o inimigo; o político se vê de mãos atadas na defesa e seu governo. Na guerra e na política deixar-se acuar é reconhecer a derrota.
Os dados estão na mesa e a partida teve início. As pedras brancas, como sempre, são as primeiras a se movimentar e caminhando no rumo da área adversária prosseguirão, se não conhecerem resistência.
A conjuntura internacional desfavorável é uma peça no tabuleiro, como a crise econômica nacional tendente ao agravamento com a crise hídrica e, dela também consequente, a provável crise energética, mais ajuste fiscal, mais lava-jato, mais a media de sempre, mais o Congresso que temos, mais a base partidária de apoio do governo, sustentada pelo fisiologismo descarado. Os dados da economia alimentam a crise política que também a ceva, com a contribuição inestimável de uma oposição partidária disposta a apelar para a desestabilização e o golpismo, e uma imprensa, sua aliada, que, na sua parcialidade antigoverno, ultrapassa as raias da ética. O enredo é conhecido.
Qualquer que seja a política do Planalto, seu ponto de partida deve ser o fortalecimento do governo e da figura presidencial, o que depende das ruas, dos movimentos sociais, mas, igualmente, de uma ordem partidária que, a começar pelo atônito PT, precisa vencer a anomia e recuperar a capacidade de luta.
Mas este é, igualmente, o momento das grandes lideranças, das lideranças partidárias, das lideranças políticas, das lideranças sociais, das lideranças estudantis. E, acima de tudo, da afirmação da liderança da Presidente Dilma Rousseff.
(*) Ex-Ministro da Ciência e Tecnologia e ex-Presidente Nacional do PSB.