“O problema é o processo”, Dr. Moro? Até Reinaldo Azevedo sabe que não!

Do CONJUR, Por Lenio Luiz Streck

Nesses tempos de crise, volta a tentação revolucionária. Contudo, o Estado de Direito deu conta de uma institucionalidade democrática, a partir da qual se pode e se deve fazer o controle e punição de condutas ilícitas. Não podemos perder a capacidade de indignação, mas sem solapar nossas conquistas civilizatórias.

Por isso, preocupa que juízes (Antônio Bochenek e Sergio Moro) publiquem um artigo de jornal sob o título de O problema é o processo (ver aqui). Ainda mais em se tratando do juiz responsável pela operação “lava jato” em parceria com o presidente da Associação dos Juízes Federais. Para incrementar a eficiência do sistema de justiça, postulam que

“A melhor solução é a de atribuir à sentença condenatória, para crimes graves em concreto, como grandes desvios de dinheiro público, uma eficácia imediata, independente do cabimento de recursos […]”[1].

Afinal, anunciam que essa tese será apresentada como projeto de lei pela Ajufe. É evidente que a notícia repercutiria. De pronto, os ministros do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurelio e Celso de Mello, caíram de pau na proposta. Corretíssimos. E por certo essa deve ser a posição unânime da Suprema Corte.  Mas o que mais impressiona — e isso demonstra o grau da crise de paradigmas que perpassa o direito — que a chinelada maior tenha vindo de um jornalista, no caso, um jornalista insuspeito em face de suas posições duras em relação a fenomenologia que cerca a operação “lava jato” e as relações com o governo. Falo da aula de Direito Constitucional que foi dada à comunidade jurídica por  Reinaldo Azevedo (ver aqui), que, entre outras coisas — óbvias, mas o óbvio deve ser dito — lembrou que:

“ […] Não basta a mudança da lei. Aí seria preciso mudar a Constituição. O Inciso LVII do Artigo 5º da Constituição estabelece: ‘LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;’”

Mais:

“Vou com o juiz até o fim do mundo, se preciso, para punir os larápios. Mas só vou se for com a Constituição. Se não, ele se torna a fonte de legitimidade da Carta, e não a Carta a fonte da sua legitimidade.(…)”.[2]

Com efeito, em sua argumentação, os juízes Moro e Bochenek fragilizam a autonomia do Direito, expondo-o à predação pela Moral e pela Economia. Essa crítica que faço não é assim só porque eu quero e por qualquer implicância. É porque é científica. Não fosse assim e no mínimo dois ministros da mais alta Corte não teriam saído com duras críticas aos colegas juízes. Ainda há algumas certezas no direito. Uma delas é o valor de uma cláusula pétrea. Vingando a tese de Moro e Bochenek, tem-se que deverá o condenado na primeira instância judicial, em regra, ficar preso? E adiantam que “A proposição não viola a presunção de inocência”! Como não? Presume inocente, mas, em regra, prende… Como assim?  É porque já há uma condenação em primeira instância… Presume menos inocente, então? Uma presunção de inocência ornamental, talvez.

Na sequência, defendem que

“as Cortes recursais possam, como exceção, suspender a eficácia da condenação criminal quando presente, por exemplo, plausibilidade do recurso”.

Talvez aí o réu recuperasse um pouco da presunção de inocência, que jamais perdera por completo (mas apenas operacionalmente, subsistindo no plano retórico). Em que pese a confusão, nosso Texto Fundamental não fala em nada disso. Mas não fala, mesmo. Socorre-nos o artigo 5º, inciso LVII. Trata-se de cláusula pétrea sendo ameaçada por lei ordinária! E, atenção: veja-se a sutiliza da frase: “as cortes possam, como exceção” (sic). Eis a palavra mágica: a invocação da exceção. E o que é (estado de) exceção? É quando o soberano decide o que é a própria exceção. Bingo. E binguíssimo.

Enfim, para ser bem breve: é uma pena ver parcela da magistratura e do Ministério Público Federal torcendo contra aquilo que é condição de possibilidade da jurisdição — a Constituição e o processo. As conquistas civilizatórias trocadas pela possibilidade de exceção. Não pensei que veríamos isso em pleno Estado Democrático. E é uma pena que os juristas temos de receber puxões de orelha de jornalistas.

O risco de jogar a criança fora junto com a água
No fundo, o que a proposta de Moro e Bochenek fazem é o clássico “pela necessidade de limpeza, joguemos tudo fora, mesmo que haja, junto com a água, o objeto do banho — a criança”. Simples assim. E ao mesmo tempo, complexo.

Explico. Entendo a indignação do juiz Moro e do presidente da Ajude. Como brasileiros honestos e ciosos pela coisa pública — e coloco aqui todos meus sinceros elogios aos dois — sentem que querem fazer mais do que suas funções permitem. Sentem-se “atados” pelas amarras do processo. Por isso a frase “O Problema é o processo”. Mas não deve ser assim. Juristas devem lutar dentro das regras de jogo e bajo a la Constituição. A democracia, do mesmo modo, mesmo quando não funciona bem, não pode ser vista como um problema. Mutatis, mutandis, o que o artigo de Moro e Bochenek representa é algo similar a um deputado que diga: assim não dá mais para tocar o Parlamento. Muitas regras, formalidades, obediência de quorum… “— O problema é a democracia…”.  E clamasse pelo Estado de Exceção.

Temos muita corrupção? Sim. Até as pedras sabem disso. E jornalistas e jornaleiros, idem. Mas não podemos resvalar para moralismos. Quanto fico tentado a fazer algum raciocínio antidemocrático tipo “assim não dá mais…”, lembro da Fábula das Abelhas, de Mandeville. Tenho-a decorada. E no alto da cabeceira da cama. É uma fábula liberal. Já contei a estorinha aqui várias vezes. As abelhas moralistas se ferraram. Pediram uma sociedade só de virtudes. Impossível, porque “vícios privados, benefícios públicos”. Só que, por incrível que pareça, em Pindorama até a fábula das abelhas ocorre de forma inversa. Por aqui é Vícios Públicos, Benefícios Privados.

Sei que há um escândalo atrás de outro. Agora é a vez do Carf (cuja sigla parece uma onomatopeia). Ao que consta, não são milhões. São bilhões de prejuízo aos cofres públicos. Hoje é assim: quem roubar menos de R$ 100 mil, vai para o JEC. Afinal, onde não tem chuncho? Alguma atividade que envolva o Estado estaria livre da chunchagem?

Temos que ter paciência. A corrupção é a conta que nossa herança patrimonialista está apresentando. Dona do poder, a sociedade de estamentos quer sempre mais. Como dizia Faoro, acima da luta de classes estão os estamentos. Há alguns anos, o jornal inglês The Guardian estampou a manchete: Brasil é pré-moderno. Tinha razão, porque os estamentos são da virada do medievo para a modernidade. São as neo-corporações de ofício, compostas por funcionários de alto escalão que-possuem-laços-de-afinidade-cleptocrática com diversos setores privados e públicos.

Assim se constroem os nichos de corrupção e poder. Qual é o critério para chegar ao Carf? E a Furnas? E a Itaipu? Indicado por quem? E para chegar aos tribunais? Sem QI, nem pense em começar. Não há almoço grátis. Alguém pensou em meritocracia? Em curriculum? Não, é claro. Gosto quando se fala “Fulano tomará posse do cargo de….”. Bingo! Toma posse e pensa que é dele. Daí a noção de birô-cracia (a força do sujeito atrás da mesa e que pensa que, primeiro, a mesa é dele e, segundo, que está prestando um favor à malta).  Brasília é o máximo. Brasília não é um lugar; é um enunciado performativo. Um lugar fundamental. Todo mundo tem poder. Os empoderados (odeio essa palavra). E quem não tem, roda a bolsa para ter.

Gostaria de ver uma severa autocrítica
Não estou pregando moral (com ou sem ceroulas) e nem quero sair gritando por aí : “vamos esfolar essa gente”. Sou um cultor da Constituição. Guardo coerência e integridade em minha fala.  Mas no ecossistema criminal, pode-se ver tranquilamente que os predadores, isto é, aqueles que, no ecossistema, deveriam predar os criminosos, estão perdendo a batalha. E sabem por quê? Talvez porque, a vida toda, nossas instituições fecharam os olhos para tudo-isso-que-está-aparecendo-agora. E estiveram demasiadamente preocupados com ladrões de galinha. Claro. Ocupados com o andar de baixo, o andar de cima foi se fartando. E se acostumando com a coisa. Na verdade, talvez nossas Instituições tenham perdido a mão, como se diz. O braço longo do direito penal se “acostumou” em pegar os descalzos. Agora, na hora de pegar os “de bota”, chegam a conclusão que o braço é curto. Não. O braço deve ser o mesmo. Não pode haver condutas ou campanhas ad hoc ou de exceção. Se eu admito exceção hoje, qual é o limite para a próxima?

Então ao menos gostaria de ouvir uma severa autocrítica dos predadores (TCU, CGU, Polícia, Ministério Público e Judiciário). E não simplesmente botar a culpa “no sistema”. Em Alegrete, no agreste gaucho, os fazendeiros, preocupados com a perda de bezerros de ovelhas, exterminaram os caranchos. Só que esqueceram que os caranchos também comiam, como sobremesa, os ovos das caturritas. Resultado: as caturritas se multiplicaram tanto, que virou uma praga. O prejuízo foi maior ainda. Por isso, há que ser cuidado. Dosagem adequada. E, atenção: isso também não pode significar o afrouxamento de garantias, como se viu no pacote apresentando pelo MPF dias atrás, contra o qual escrevi com veemência. E tampouco chegar ao extremo de viabilizar a proposta apresentada pelos juízes Moro e Bochenek.

O que ocorre é que a corrupção virou uma pandemia. O dilema é, parafraseando o psicanalista Alfredo Jerusalinski: como combater o gozo desses setores corruptos de terrae brasilis sem ser tirânico? Quem não souber responder a isso não pode se meter no jogo. Isto porque o jogo se joga dentro das regras. Mesmo que não gostemos das regras. Afinal, fomos nós que as fizemos.

Post scriptum: para que não sejamos tentados a fazer discursos moralistas, leiam:

“Ressurge a Democracia”
“…salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo (…) o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições.   Agora, o Congresso dará o remédio constitucional à situação existente…(…).. Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente, certos, enfim, de que todos os nossos problemas terão soluções, pois os negócios públicos não mais serão geridos com má-fé, demagogia e insensatez. (…)  Era a sorte da democracia no Brasil que estava em jogo.”

– Os meus leitores sabem do que se trata? Pois lhes conto. Trata-se do editorial do Jornal O Globo de 2 de abril de 1964. Bingo! Há 51 anos!  Que lhes parece? Por isso, tenho tido o máximo cuidado quando tenho coceiras autoritárias… Além de ler a Fábula das Abelhas, leio esse editorial! É, meus Amigos, a história é cruel.


[1] MORO, Sérgio; BOCHENEK, Antônio Cesar. O problema é o processo. In: Jornal Estadão, Blog do Fausto Macedo, São Paulo, 29 Mar 2015. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-problema-e-o-processo/>. Acesso em: 31 Mar 2015.

[2] AZEVEDO, Reinaldo. Um péssimo artigo do juiz Sérgio Moro. Ou: O mal do Brasil não está no cumprimento da lei, mas no descumprimento. In: Revista Veja, Blog do Reinaldo Azevedo, São Paulo, 30 Mar 2015. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/um-pessimo-artigo-do-juiz-sergio-moro-ou-o-mal-do-brasil-nao-esta-no-cumprimento-da-lei-mas-no-descumprimento/>. Acesso em: 31 Mar 2015.

 

 é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito.