“Eu nasci de ti e para ti retorno / argila, pote de barro /
Com minha morte descanso / no teu pó enamorado”.
(Jorge Adoum. Vasija de barro. 1950)
A inauguração do Cemitério Indígena de Manaus, nesta terça (19), no bairro Tarumã, quando se celebra o Dia dos Povos Indígenas no Brasil, dois dias depois do Domingo da Ressurreição, tem forte carga simbólica, que evoca a música “Vasilha de barro”, uma espécie de ´hino nacional´ não oficial do Equador. Lá, o poeta pede para ser enterrado, como os seus antepassados, dentro de um pote de barro cheiroso, escuro e fresco, de boca larga e bojo grande, amparado por rituais de cantos, danças, rezas, flautas, maracás.
Era assim que muitas culturas indígenas da Amazônia se despediam dos seus entes amados. Sabemos disso, porque os sepultamentos em igaçabas ou camucins de argila atravessaram os séculos, ao contrário dos enterros feitos em perecíveis redes de algodão ou cestos, que não resistiram ao tempo. Por isso, a arqueologia na região centra seu foco nos artefatos de cerâmica, como aqueles do antigo cemitério dos Manao, na Praça D. Pedro II, inaugurada no ano passado como Aldeia de Memória Indígena.
Os potes de barro exibidos hoje em museus no Brasil e no exterior são obras de artes que apresentam “ornamentos de altíssimo valor estético, em meandros, espirais e desenhos de escada, vermelhos e amarelos, passando por dentro do traço original” – diz o naturalista suíço Emilio Goeldi, que durante treze anos pesquisou e viveu na Amazônia (1894-1907). A morte era suavizada, assim, pela beleza da despedida.
Tal prática mortuária comum no passado distante ocorreu também até em épocas recentes. Além da rara beleza, as urnas de barro contam histórias sobre as sociedades ameríndias, seus rituais, suas crenças, as formas de se relacionar com a natureza e de dizer adeus, embora não exista “um ‘dicionário’ para traduzir todos esses símbolos” – como esclarece a arqueóloga Anne Rapp Py-Daniel, professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), especialista em Arqueologia da Morte.
Cemitério intercultural
Aos que virão depois de nós, quais histórias serão narradas pelo Yané Ambiratá Rendáwa Bara Upé, nome em Nheengatu do novo Cemitério ainda sem nenhum sepultamento? Como serão ali enterrados os mortos? Levarão com eles arcos e flechas como no passado? Será isso possível para quem vive em contexto urbano e não usa mais tais armas? As lápides terão inscrições bilingues em português e nheengatu?
O projeto técnico-arquitetônico indica a via da interculturalidade. A ala independente no Cemitério Nossa Senhora Aparecida, no Tarumã, zona Oeste da cidade, com um portal de entrada exclusivo, tem cinco módulos de sepulturas verticais, cada um com 216 gavetas, totalizando 1.080 espaços. Mas as ocas cerimoniais, os jardins de ervas e a decoração recorrem à arte indígena com grafismos de 15 artistas Kokama, Tukano, Tikuna, Mura, Sateré. A modernidade dialoga aqui com a tradição.
O Cemitério, museu a céu aberto, pode abrigar réplicas de urnas funerárias, sugeridas pelo arqueólogo Eduardo Neves da USP para a Aldeia de Memória Indígena. O trabalho dos artistas foi acompanhado de perto por Tenório Telles, presidente da Concultura e Alonso Oliveira, diretor-presidente da Manaus-Cult, que acolheram a reivindicação da Associação Yepemahafa dos Povos do Alto Rio Negro e da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (COPIME), liderada por Marcivana Sateré.
– Estou entrevistando aqui artistas, alguns reconhecidos nacionalmente, que estão pintando as paredes laterais do cemitério vertical. Essa turma vai sensibilizar toda a sociedade amazonense e os visitantes do cemitério, por apresentarem uma humanidade que estava perdida nos tempos e que agora se torna visível – escreveu o jornalista Cristovão Nonato da Secretaria Municipal de Comunicação.
Raízes indígenas
Essa visibilidade foi reivindicada à Prefeitura pelo movimento indígena, cujos líderes querem preservar a memória da cidade – relembra Tenório, destacando a acolhida do prefeito David Almeida que pediu perdão aos povos originários por mais de três séculos e meio de esquecimento. “Trata-se de reparação histórica, uma forma de reconhecer os primeiros habitantes onde foi erguida Manaus” – completa Alonso, que salientou o trabalho integrado de várias secretarias.
É preciso reconhecer esse trabalho integrado, embora saibamos que “imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados” – como queria o saudoso Millôr Fernandes. O Poder deve ser permanentemente fiscalizado e criticado. Por isso, é difícil para esse locutor que vos fala admitir o acerto de alguém de campo político e ideológico oposto e de quem você discorda em quase tudo e a quem continuará se opondo. Confesso, no entanto, que na questão indígena, David Almeida fez um golaço de placa.
Manaus começa, enfim, a criar vergonha e assumir sua raiz indígena, homenageando seu passado para enriquecer o presente. É apenas um começo, faz-se necessário aprofundar políticas municipais de emprego, saúde, moradia e de espaço para exposição e venda de artesanato. Esperamos que a administração municipal continue ouvindo os cerca de 40 mil índios de 92 etnias, falantes de 39 línguas diferentes e que moram em 62 bairros da capital – segundo levantamento da Manaus-Cult.
A qualidade de vida dessa população passa pelo direito à morte digna. O novo cemitério indígena agora inaugurado talvez possa acolher a memória e os restos mortais das vítimas da Covid-19: Quintina Tuyuka, Higino Tuyuka, Isaias Baniwa, Valeriano Baré, Valdomiro Arara. Ely Makuxi e tantos outros que merecem repousar no pó enamorado da mãe-terra.
Homem de barro
A história do pó enamorado começou numa festa, em novembro de 1950, em Quito, na casa do conhecido pintor Oswaldo Guayasamin, que reuniu artistas, pintores, poetas, músicos e alunos da Faculdade de Belas Artes, para mostrar a eles o quadro “A origem” que acabara de pintar. A tela com a tinta ainda fresca retratava ritual funerário andino: uma mãe abraçava o esqueleto do filho dentro do seu ventre, que tinha a forma de um pote de barro.
Foi um deslumbramento geral. O poeta Jorge Carrera escreveu ali mesmo a primeira estrofe do poema. Outro poeta, Hugo Alemán, a segunda. Estimulado por eles, Jaime Valencia fez a terceira e Jorge Adoum criou a quarta estrofe. Os músicos Gonzalo Benitez e Luiz Valencia, com um violão, compuseram na hora a música, que intitularam primeiro de “Homem de barro” e depois “Vasilha de Barro” como ficou conhecida no mundo inteiro. Guayasamin morreu em 1999 e Adoum dez anos depois, ambos foram enterrados em pote de barro como desejavam.
A imagem literária do pó enamorado, que circula na literatura espanhola desde o século XVI, tem também raízes cristãs, lembrando as cinzas, o amor, o sentimento conquistado pela humanidade – explica a crítica literária Aurora Cano, o que me estimulou a reivindicar um lugar no Cemitério Indígena de Manaus embora, sem falsa modéstia, eu tenha consciência de que não sou tão “merecendente”.
Caso destinem um espaço a aliados fiéis, lembrem o que disse um dia o Edson Kayapó sobre meu envolvimento com a causa:
– O Bessa só não é índio porque não quer.
Ah, quem me dera que dependesse só da minha vontade! De qualquer forma, já adiantei o meu pedido ao João Paulo Tukano: guardem uma gaveta ou um pote de barro para este locutor que vos fala, que quer descansar ao lado de seus amigos indígenas. Mas, por favor, sem pressa. Sem pressa, eu espero. Se não for pedir demais, reservem também uma vaguinha para o poeta Aldísio Filgueiras, que está concluindo seu livro-poema “Manaus, como se diz, como se vê”. Ele também sabe esperar e jamais furou fila.
Não guardem nenhuma gaveta para quem se autoconcedeu a medalha do mérito indígena. Todos eles são inimigos dos índios, de quem debocham. Nem para os que com recursos públicos compraram viagra, prótese peniana, botox para rugas, remédios para calvície e se lambuzam com picanha e leite condensado. Eles agridem a mãe-terra, invadem as terras indígenas, poluem os rios, desmatam a floresta, não merecem repouso no regaço do pó enamorado, que é a parte mais nobre da condição humana.
P.S. Aos 15 artistas autores dos grafismos indígenas no cemitério dedico o quadro do Guayasamin e o poema que ele inspirou escrito a quatro mãos. São eles:
6 Kokama: Wira Tini, Thaís, Francisco Maricahua, Jason, Ludimar e Chermie Ferreira;
4 Tukano: Ivan, César, Cledyson e Frank;
2 Tikuna: Elizete e Angélica
2 Mura – Tuniel e Jheyde
1 Sateré – Joede