Esclarecedora, para dizer o mínimo, a notícia veiculada no jornal O Globo de que carta assinada pelos presidentes dos três clubes militares (Naval, Militar e da Aeronáutica) defenderia o retorno do 31 de março ao calendário de comemorações das forças armadas. O dia em que teve início a ditadura que perseguiu milhares e torturou centenas de brasileiros, ao longo de 25 anos de repressão política seria, nas palavras deles, símbolo de “defesa da democracia” contra “a tomada do poder por um regime ditatorial comunista” –um devaneio carregado de tintas da Guerra Fria.
Os signatários querem nos convencer de que estavam imbuídos do mais elevado nacionalismo e são absolutamente sinceros em sua defesa das virtudes do golpe militar, mas, quase concomitantemente à divulgação dessa carta, outros documentos chegaram às manchetes dos jornais para não nos permitir esquecer o que, de fato, significaram os “anos de chumbo”: as ordens oficiais da Marinha em relação à Guerrilha do Araguaia, foco de combate armado à ditadura, era de “eliminar”, assassinar friamente, os insurgentes –não apenas reprimir o movimento.
São lados de uma história que, até hoje, não soubemos contar direito. O Estado brasileiro carrega a chaga de sustentar até hoje uma Lei de Anistia que acoberta aqueles que cometeram graves e imprescritíveis crimes contra a humanidade durante a ditadura militar –lei essa, inclusive, condenada pelos tribunais internacionais por sua irrazoabilidade perante a gravidade das transgressões cometidas a partir do golpe de 1964. E seguimos, 26 anos depois da redemocratização, sem dar resposta satisfatória às famílias dos desaparecidos.
Basta vermos o ótimo exemplo da Argentina, que, ainda que tardiamente, iniciou processo contra mais de 400 pessoas acusadas de terem participado ou apoiado crimes de assassinato e tortura contra opositores do regime militar naquele país (1976-1983). Desses, 40 casos já transitaram em julgado –ou seja, não cabe mais recurso. Aqui, infelizmente, forças conservadoras influentes no Congresso e no Judiciário ainda barram as boas iniciativas contra a nossa inação nesse sentido, como a Comissão da Verdade.
Um dos principais argumentos contra a apuração dos crimes da ditadura, o de que também deveriam ser colocados em julgamento aqueles que militaram contra o regime repressor, entre os quais estão pessoas que hoje ocupam cargos públicos de relevância e exercendo suas profissões como cidadãos plenos de direitos, chega a parecer ingênuo. Não há comparação entre o crime cometido com o empenho do aparato do Estado contra a população civil e a resistência política de grupos opositores, ainda que adeptos da luta armada.
Em primeiro lugar e acima de tudo, porque a repressão na ditadura se caracterizou pela ação violenta de servidores públicos –policiais e militares– que, por lei, deveriam prezar pelos direitos dos presos. Em segundo lugar, pela falta de confiabilidade dos registros legais da época: os julgamentos de “terroristas” eram frequentemente montados para levar à condenação –prisão, tortura, perda do emprego, exílio e até pena de morte, aplicada pelos torturadores nos porões da ditadura.
E esse passado, que muitos preferem fingir que não aconteceu, volta para nos espreitar na carta dos presidentes dos clubes militares. Um passado de crimes que só consegue rastejar do fundo do esquecimento para dar as caras no presente graças ao espaço que lhe é garantido pela impunidade.
José Dirceu, 65, é advogado, ex-ministro da Casa Civil e membro do Diretório Nacional do PT