O Neymar não é só jogador de futebol. É contribuinte e cidadão. E como tal tem deveres, mas, também, direitos.

Neymar é um jogador de futebol profissional, um ídolo, mas antes disso é um contribuinte. E bem antes disso é um cidadão com deveres, mas, também, com direitos. Ele está nas páginas sendo alvo de uma série de atitudes nada em comum acordo com as leis brasileiras e o que é pior, por parte de funcionários ocupantes de carreiras de Estado.

Neymar foi autuado pela Receita Federal em Santos relativamente a transação que o levou do Santos ao Barcelona. Dias depois o fato estava nos jornais violando a Constituição Federal, art. 5º, X, bem como o art. 198, do CTN.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades. (Redação dada pela Lcp nº 104, de 2001)

Semanas depois Procuradores da República entraram com uma ação criminal por crime contra a ordem tributária contra Neymar com o objetivo claro de coagi-lo a pagar aquilo que ainda nem havia sido discutido na esfera administrativa, que dirá judicial. Ganharam as manchetes dos jornais, obviamente, mas o Juiz Federal Mateus Castelo Branco, da 5ª Vara de Santos, oito dias depois, acolheu o argumento da defesa de que não poderia sobreviver tal acusação enquanto não houvesse uma decisão definitiva do processo administrativo na Receita.

E encerrou o assunto na sua esfera. Surgiram posições prós e contra, e eu, obviamente, como os demais, também, tenho a minha: é a favor do Juiz. Sei que não é a politicamente correta nestes tempos de caça às bruxas, mas é a minha opinião.

Explico.

O Juiz não está inocentando Neymar. Nem condenando. Está aplicando a Súmula Vinculante nº 24 que diz:

“Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.”

Como súmula vinculante vincula a todos, o Juiz a cumpriu dizendo que todo o rito do processo administrativo terá que ser obedecido porque só existe lançamento definitivo do tributo após o julgamento definitivo em até três instâncias. Normalmente isso demora, no mínimo, 10 (DEZ) anos. Não há prazo para o processo ser julgado. Se ao final Neymar perder na esfera administrativa, aí sim poderá ter início a ação por crime de sonegação fiscal. Caso ele parcele, o processo judicial fica parado enquanto ele estiver pagando as prestações. Se pagar a dívida tributária, e o processo judicial ainda não tiver sido iniciado, não poderá mais nem começar. Se já tiver sido iniciado, será arquivado.

Dou estas explicações para que os leitores entendam como funcionam as regras e que elas se aplicam a todos os brasileiros e não apenas ao Neymar.

Por último, só para registrar, quando é o contribuinte que tem direito à restituição o processo demora muito mais do que 10 (DEZ) anos.

Não é isso que eu gostaria que fosse, em relação à demora, mas na vida real é isso que acontece. Nos dois casos, quando o Fisco é o credor ou quando ele é o devedor.

Sobre o assunto merece ser lido e refletido o artigo do ilustre advogado Nelson Wilians intitulado “O Juiz de Santos no caso Neymar e os juízes de Berlim”:

“Foi extremamente bem-vinda a notícia que de que o juiz da 5ª Vara Federal de Santos, Mateus Castelo Branco, aplicando a lei, rejeitou a denúncia do Ministério Público Federal contra o astro do Barcelona, Neymar Junior, seu pai, Neymar da Silva Santos, e dois dirigentes do Futbol Club Barcelona.

O MPF, por sua vez, havia oferecido a denúncia na última semana, pugnando pela condenação dos acusados ao argumento de que eles, supostamente, forjaram documentos entre 2006 e 2013 com o objetivando suprimir impostos devidos à Receita Federal do Brasil.

O julgador evocou a força da Súmula Vinculante 24 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual é vedada a tipificação de crime contra a ordem tributária, antes do lançamento definitivo do tributo. Significa dizer que enquanto a cobrança do tributo ainda estiver sendo discutida na esfera administrativa, não pode haver ação penal.

Desviando-se dos holofotes e da atenção demasiada que o simples nome do jogador atrai, do pré-julgamento e da exacerbação da própria autoridade, o magistrado agiu com segurança e simplicidade, deixando-nos com a sensação que vivemos, com efeito, a plenitude de um Estado Democrático.

Vale lembrar que a tutela jurisdicional visa a pacificação social e a busca da justiça por meio das normas do Direito. Os princípios da investidura e unicidade asseguram que a autoridade do juiz seja regular e legal e que a aplicação da jurisdição seja distribuída de forma equânime entre as partes, não havendo distinção entre elas, sejam pessoas anônimas, astros de futebol internacional ou outra ‘constelação’ popular ou o próprio Estado.

Contudo, aguarda-se mais um capítulo dessa história para depois do ocaso do tríduo momesco que se avizinha. A acusação fala em recorrer da decisão, numa tentativa de afastar a incidência da Súmula Vinculante 24 do STF, ao argumento de que o crime de falsidade ideológica teria ocorrido independente dos crimes de sonegação. Ora, quiçá, tal ponto de vista já tenha sido considerado pelo magistrado de forma que, na sua visão, o suposto crime de falsidade ideológica não merece ser processado independente dos crimes de sonegação, pois ao afirmar na decisão que é inviável a ação penal tendo em vista o processo administrativo ainda estar em curso, pode ter considerado também a prevalência do princípio da consunção, de sorte que o suposto crime “menor”, ou “crime meio” de falsidade ideológica, tenha sido absorvido pela prática delitiva “maior” ou “fim”, que seria a suposta sonegação fiscal propriamente dita.

Há regras, portanto. Há leis, princípios e entendimentos jurisprudenciais consolidadas que devem ser observados. Essa, em outras palavras, foi a mensagem que encontramos na decisão ora comentada.

A circunstância fez-nos lembrar o caso do moleiro de sans-souci.

Vale recontar essa história que, mesmo depois de tantos séculos, induz a uma importante reflexão. Consta que Frederico II, rei da Prússia, construiu um castelo na encosta de uma colina que foi batizado com o pitoresco nome de: Sans-Souci, expressão francesa que quer dizer “sem-preocupação”.

Quando Frederico II, amigo de Voltaire e conhecido como “O Déspota Esclarecido”, pretendeu ampliar o castelo, deparou-se com um problema na vizinhança: o dito moinho que impedia a sonhada ampliação e ainda estorvava a visão da bela paisagem.

O moleiro vivia ali desde a época de seus antepassados. Recusa todas as investidas do monarca visando comprar-lhe o moinho. Responde a cada oferta de maneira convicta que dinheiro algum o faria desfazer-se daquele pedaço de chão, onde seu pai morrera, berço e morada de seus filhos.

Diz a história que o rei indignado com a negativa de venda do moleiro resolve exercer a tirania: Frederico teria dito ao moleiro que, se de fato a quisesse,  teria a terra de qualquer maneira, pois mesmo que não possa compra-la, como rei, poderia tomá-la sem nada pagar.

Diante dessa ameaça responde o moleiro com a famosa frase: “O senhor! Tomar-me o moinho? Só se não houvesse juízes em Berlim.”

Ainda que Neymar não seja um modesto moleiro, vivemos cercados dos ditos conflitos intersubjetivos de interesses e das arbitrariedades cometidas pelo próprio Estado. É um lenitivo saber de decisões como simples e objetivas como a que foi proferida no caso em comento. Ainda temos bons juízes. Ou por outra: ainda há Justiça. Justiça com direito.

A país atravessa um momento muito delicado, a crise política e a crise econômica grassam no seio de nossa sociedade. O noticiário transformou-se em um diário da corrupção. Esse é um campo muito fértil para a autopromoção por parte dos responsáveis por aplicar a lei e para o pré-julgamento. Em muitos casos, a melhor solução passa pela simplicidade da navalha de Occam e pela coragem de aplicar a lei.

Se queremos uma sociedade justa o direito deve ser um bem sagrado. É o que dá segurança a todos. Nossa Constituição Federal garante que não haverá juízo ou tribunal de exceção.

Fazer justiça com a observância de todos os princípios de Direito que as normas impõem. Ainda há juízes em Santos.”