O MILAGRE DA PIMENTA MURUPI

Por José Ribamar Bessa Freire

Tinha 82 anos, mas era hiperativa. Cuidava dos netos, da casa, da paróquia, ensinava catecismo, militava na pastoral da saúde e ainda encontrava tempo para dar sermões e esbregues na Pretinha, uma de suas filhas, que a visitava diariamente para filar o café da manhã. Até que sofreu um acidente vascular cerebral, um AVC dos brabos. O derrame – como ela dizia – deixou graves seqüelas. Com um lado do corpo paralisado, ficou prostrada no fundo de uma rede na casa de uma filha, no Conjunto Aquariquara, em Manaus.

Telefonei pra lá do aeroporto do Galeão, minutos antes de embarcar num vôo para Manaus. Meus ouvidos, leigos e ignorantes, escutaram, então, minha irmã anunciar tomografias computadorizadas, ressonâncias magnéticas, além de isquemia, parênquima encefálico e outros babados. Não entendi bulhufas daquele discurso, que me pareceu misterioso e esotérico. Mas o aviso final foi cristalino e perturbador:

– “Te prepara, não vais reconhecê-la. A mamãe está muito deprimida”.

A depressão era a pior das seqüelas, eu pensava durante o vôo, que atrasou na escala em Brasília, deixando-me mais angustiado ainda. Confirmei tudo quando, finalmente, a reencontrei, imobilizada numa cadeira de rodas, não era a mesma pessoa cheia de graça e de vida de quem eu me despedira alguns meses antes. Parecia haver encolhido e diminuído de tamanho. Olhou-me, e era tão frágil o seu olhar! Com dificuldade na fala, e era tão débil sua voz, disse – seu dizer era quase inaudível – “Meu filho, assim não vale a pena viver”.

Nessas circunstâncias, o quê responder? Concordar com ela seria letal. Mas onde estavam os argumentos para discordar? Quem me salvou foi a lembrança de um jornal que encontrei em minhas pesquisas, editado em 1910, em Porto Velho e dirigido aos trabalhadores da ferrovia Madeira-Mamoré. Debaixo do título havia uma frase em espanhol: “La vida sin literatura y quinina es muerte”. Inspirado por tal frase, perguntei:

– O médico proibiu pimenta?

Quem respondeu, rapidinho, foi minha irmã:

– Não! Mandou evitar gordura, fritura, essas coisas. Mas pimenta pode com moderação na sopa, no purê, no caldo de peixe.

Dei, então, o xeque-mate, pensando na quinhapira com beiju feita pela sogra do Nazareno numa comunidade tukano do rio Tiqué, capaz de levantar defunto: – “A vida vale a pena, mãe, enquanto a gente pode saborear uma pimentinha”. Deixei de lado a quinina e adaptei a frase do jornal, concluindo com entusiasmo: – “La vida con literatura y pimienta murupi es todavía vida”.

Eu sabia que daquela armadilha ela não escapava. Seus olhinhos azuis brilharam. Ela a-do-ra-va pimenta. Qualquer uma: malagueta, de cheiro, cumari, dedo-de-moça, olho-de-frade, chifre-de-veado. Mas sua preferência era pela murupi, que ela costumava comer assim: segurava na mão esquerda a pimenta, tirando pedaços dela com mordidas decididas, e aí, com um garfo na mão direita levava uma porção de comida à boca, em movimentos repetidos e alternados. Dizia que assim, misturando, mas sentindo primeiro o gosto da pimenta, realçava e enfatizava o sabor do peixe, do frango, da carne.

Sempre tinha uns pés de pimenta murupi no quintal de casa, que ela mesma plantava. Eram colhidas de manhã, antes de esquentar o sol. Não recomendava colhê-las molhadas pela chuva ou pelo orvalho, porque podiam murchar e apodrecer. Cortada na cozinha, o aroma se espalhava até a sala e ganhava a rua, aguçando o apetite. Na impossibilidade de comê-la assim, fresca, servia em molho, em conserva ou desidratada.

– A murupi é a rainha das pimentas – ela sentenciava com a sabedoria acumulada, mesmo depois de provar o rocoto e o aji do Peru. Aos 60 anos, fez uma viagem por cidades européias – Paris, Roma, Veneza, Milão, Varsóvia, Moscou, Leningrado, Kiev – carregando a tiracolo um frasco de murupi no molho de tucupi, que retirava da bolsa para acompanhar qualquer comida servida em restaurantes. Na França, não hesitou em cometer uma heresia, salpicando o patê de foie gras e, dessa forma, inventou sem querer o apimentado “patê no tucupi”. Posso vos garantir que é delicioso.

Por isso, com esse currículo todo, ela acabou se animando com a possibilidade de curtir por mais algum tempo essa centelha de vida condensada na pimenta, que saboreou até aos 45 minutos do segundo tempo. Se a murupi não operou o milagre da ressurreição, lhe deu pelo menos uma sobrevida de 18 meses com um entusiasmo comedido, mas sincero. Despediu-se da vida levando o sabor e o aroma da murupi.

Por que consumo teu precioso tempo com essa história, desocupado (a) leitor (a)? É que uma irmã, que tem o mesmo nome da minha mãe, me trouxe de Manaus um molho de pimenta murupi, que é para degustar, rezando, de joelhos, ou miando como uma gata no cio em teto de zinco quente. A gente prova e tem vontade de cantar os três hinos da novena, começando com …”Virgem Mãe, Apareci-iiida, estendei o vosso olhar”… e terminando com o “Viva a mãe de Deus e no-o-ssa”.

O frasco tem um rótulo onde se lê o nome da empresa artesanal que fabricou o molho: Cozinha e Arte. Contaram-me que a responsável por essa obra de arte é alguém que terminou o curso de Farmácia na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Faz sentido. Só mesmo um profissional sensível com experiência de laboratório, conhecendo a arte de fazer dosagens, pode aprisionar numa garrafa a essência do aroma e o sabor picante da murupi. A UFAM devia dar-lhe o título de doutor honoris causa e propor a candidatura da murupi como patrimônio da humanidade.

Foi o melhor molho de pimenta que provei em minha atribulada existência. Acreditem em mim, afinal por ser filho de quem sou provei a murupi ainda na primeira mamada, veio no leite materno. No período de aleitamento, ainda de resguardo, a canja de galinha que ela tomava vinha sempre com uma pimentinha.

A história da dona Elisa e o molho da Arte Caseira provam e comprovam que “la vida sin literatura y pimienta murupi no es vida, es muerte”.

P.S. – No rótulo do frasco aparecem dois números de telefone de Manaus (3237-6793 e 9136-1145), que não testei, mas me sinto na obrigação de reproduzir aqui para compartilhar esse prazer com quem é chegado numa pimentinha. Afinal, o leitor também tem mãe e pode um dia precisar. Não é merchandising não! Trata-se apenas de prestar serviço ao leitor e não ao fabricante a quem não conheço, mas a quem, de qualquer forma, agradeço por sua mão abençoada. Aqui estão vossos devotos, cheios de fé encendida.