Ribamar Bessa
O velho, como era seu hábito diário, caminhava em ritmo acelerado pelas alamedas do Campo de São Bento – uma área de 40.000 metros quadrados que ocupa um quarteirão inteiro do bairro de Icaraí, em Niterói. De repente, parou debaixo da mangueira, se abaixou e recolheu uma manga do chão. Examinou-a. Viu que não estava mordida por morcego ou passarinho. Cheirou, acariciou a fruta madura e resmungou num tom de quase lamento:
– Essas são as últimas mangas da estação!
Parecia que ele estava falando sozinho, mas na realidade conversava com as árvores. – “O velho está ficando tantã” – comentou o vendedor de água de coco que, de camarote, assistia “aquela presepada”. As mangueiras, mudas, nada comentaram. Acostumadas a frutificar, anualmente, entre o natal e o carnaval, encerram a temporada sempre por volta de fevereiro. Agora, ouviam as queixas apresentadas pelo velho, que cada ano tinha a voz menos firme e os cabelos mais ralos e mais brancos.
Com a careca protegida do sol pelo infalível bonezinho azul que tinha o escudo do Vasco na viseira, ele prosseguiu sua marcha debaixo das árvores centenárias e frondosas do parque. Passou pelas imponentes palmeiras imperiais e, em seguida, pela calabura, cujos galhos em escadinha proporcionam sombra refrescante e atraem borboletas coloridas, alegres bentevis e sanhaços saltitantes, que passeiam em volta de suas flores brancas salpicadas de sementes amarelas.
Depois, o velho foi costeando os canteiros de flores, onde algumas pombinhas se deslocavam em voo rasante. Deu a volta no lago que tem um chafariz, atravessou a pequena ponte, transpôs o caramanchão coberto de trepadeiras, lianas e cipós, cruzou o laguinho onde patos e gansos se banhavam, passou pelo parquinho de diversões e parou diante do coreto. Fingiu que não ouviu o rapaz dizer, em voz baixa, à namorada:
– Disfarça que lá vem o velho maníaco.
Ninho de plástico
Além de maluco, ele ficou com a fama de maníaco do parque. Aconteceu no tempo em que ainda fazia suas preleções aos jovens do Colégio Estadual Joaquim Távora, que se reuniam no coreto para matar aulas e, às vezes, para fumar um baseado. Por acreditar na educação como redentora da humanidade, o velho fazia longos discursos aos estudantes, tentando despertar neles uma consciência socioambiental. Insistia na responsabilidade individual, de cada um, em relação ao lixo, e apontava para o parque coberto de sujeira.
Seu tom de voz era de um missionário. Dizia que aquele era um combate desigual travado por um exército de garis, que perdia todas as batalhas para os usuários do parque, responsáveis por tanta imundice. Diariamente “jogavam no mato” garrafas de plástico e de vidro, copos e sacos de plástico, papel plastificado, latas de cerveja e de refrigerantes, embalagens plásticas e de papel de alumínio, pontas de cigarro e todo tipo de entulho.
Em seu discurso inflamado, o velho mostrava como o lixo pode ser altamente prejudicial ao meio ambiente, à saúde humana e à vida urbana, entupindo bueiros, provocando alagações, mortes, desabamentos. Discorria sobre o tempo de decomposição de muitos resíduos sólidos, sobretudo dos 800 bilhões de objetos de plástico que são produzidos anualmente no mundo, muitos dos quais acabam chegando aos rios e oceanos, matando peixes e aves por asfixia.
– Vocês não viram no Jornal Nacional aquela baleia que morreu com mais de 800 kg de sacos de plástico dentro do estômago? – ele perguntava num exercício de retórica. Exibia a foto que havia tirado, ali mesmo, no Campo de São Bento, de um ninho de bentevi – uma bola de lixo presa entre os galhos, feita com retalhos de plástico misturados com capim.
Os jovens ouviam tudo em profundo silêncio, numa atitude aparente de reverência e atenção. Mas quando o velho virava as costas, debochavam, faziam teatrinho, imitando-o e, pior, continuavam emporcalhando os canteiros de flores sobre os quais era atirada diariamente uma enxurrada de detritos, embora existam dezenas de lixeiras espalhadas por todo o Campo de São Bento – um patrimônio público cujo paisagismo original é de autoria do arquiteto belga Arsênio Puttmans contratado, em 1908, pelo então prefeito João Pereira Ferraz.
Xerife do parque
Diante da inutilidade da palavra, o velho se autonomeou, então, xerife do Campo de São Bento e resolveu partir para a ação, a guerrilha e o terrorismo. Um dia, viu uma senhora de classe média, vestida com roupa de butique, atirar garrafas pet num canteiro de flores. Deu um grito: – “Ei, minha senhora, não faça isso, vai matar as plantinhas”. Ela peitou o velho: “Não é da sua conta”. Ele, então, aos berros, a chamou de porca, de criminosa. Duas velhinhas que assistiram tudo, o censuraram por ter sido excessivamente agressivo.
Mas a gota d’água foi quando ele viu uma jovem mãe, bonita, cheirosa e gostosa, caminhando com seu filho de uns três anos para o parquinho de diversão, onde as crianças se divertiam no carrossel ou no bate-bate com seus carros elétricos coloridos. Depois de jogar um saco de pipoca vazio no chão do rinque de patinação, a mãe atirou um potinho de iogurte com um canudinho sobre um canteiro de flores, dando belo exemplo ao filho.
O velho perdeu a esperança na humanidade. Foi aí que sua fama de maníaco do parque se consolidou. Já que não podia mudar o mundo, não deixaria que o mundo o mudasse. Concentrou todas as suas energias num combate solitário, mas sem trégua, aos canudinhos de plástico, a quem devota um ódio supino, porque são tantos espalhados pelo parque, que os garis deixaram de recolhê-los, concentrando-se no lixo mais grosso.
Cada um tem sua mania. A do velho passou a ser recolher todos os canudinhos de plástico que diariamente infestam o parque, entopem os bueiros e matam as plantas. Em sua caminhada diária, vai catando o que encontra. É uma guerra, na qual o inimigo se disfarça até mesmo usando uniforme camuflado. Os malditos fabricantes passaram a produzir um canudinho de cor verde, vendido pelos quiosques do parque, difícil de ser visto entre as folhas, sobretudo para o velho, cujo olho direito afetado por um princípio de catarata está com um embaçamento visual.
Nessa cruzada santa contra o lixo, o plástico e os canudinhos – uma calamidade pública não assumida ainda pela sociedade – o velho se tornou uma espécie de tropa auxiliar de gari. Mandou várias cartas para a Rede Globo, sugerindo que as novelas abordem corajosamente “o maior crime do planeta”:
– Em vez de mostrar personagens que cometem crimezinhos mequetrefes e vagabundos, eliminando um indivíduo aqui, outro ali, como faz a Tereza Cristina, de Fina Estampa, deviam mostrar o crime dos crimes, a tentativa de assassinar a própria mãe, a mãe terra – ele escreveu, achando que se pudermos nos ver como num espelho é possível reverter o dano.
– Uma só novela da TV pode transformar o Brasil numa enorme Curitiba educada, limpa e saudável – diz o velho que ganhou fama de maníaco, de doido. Pobre planeta! As mangas de fevereiro são as últimas da estação ou as últimas da história da burrice e da estupidez humana?
(*) Ribamar Bessa é jornalista, professor e escritor.