Aloysio Campos da Paz Júnior, o Dr. Campos, que sempre me pareceu imune à morte, deixou a vida hoje. Leio o aviso e não creio. Conheci-o como médico, em hora difícil, mas ele se tornou amigo, interlocutor, um iluminador, com suas ideias sempre muito além do senso comum, da mediocridade. Muito se dirá sobre ele e tudo é pouco, mas sua vida pode ser resumida no seu legado: Com a criação da Rede Sarah ele provou que é possível oferecer saúde pública de alta qualidade, gratuita e com as portas abertas a todos.
Houve um tempo em que desfrutei intensamente de sua luz. O Sarah e a medicina pontuavam a conversa mas estar com ele era ouvir sempre uma informação ou uma opinião inquietante sobre política, arte, ciência, comportamentos. Nas longas conversas que tivemos, eu gostava particularmente de suas memórias dos primeiros tempos de Brasília. Lembro-me muito de seus olhos úmidos contando o momento em que um avião decolou fora de hora no dia primeiro de abril de 1964. Jango partira para Porto Alegre. Ainda era presidente mas declararam vaga a Presidência da República. Nos últimos tempos, dr.Campos esteve mais recolhido, a idade certamente pesava, a caminhada fora longa e árdua.
Acompanhei durante muitos anos a saga do Sarah, que ele começou a construir como o “Sarinha”, uma pequena unidade de ortopedia e reabilitação infantil, ao lado do Hospital de Base, antigamente chamado Hospital Distrital. Foi nele que o jovem ortopedista atuou quando chegou em Brasília, atendendo os operários que se machucavam nas obras e chegavam aos montes, de caminhão. Eram os candangos. Nem ambulância havia, pelo menos não em número suficiente. Isso foi antes de sua ida para a Inglaterra, onde se doutorou em Oxford e estudou com os maiores craques da área. Veio o golpe, tudo se desmorou na utopia juscelinista que o trouxera, com dona Elcita, para a nova capital. Apesar de seus vínculos com a esquerda, da família ligada ao velho PCB, ele remou no cipoal autoritário e moldou a instituição como imaginava. O Sarah deixa de ser um apêndice, o “Sarinha”, e vira hospital, o primeiro da futura rede, vinculado à Fundação Pioneiras Sociais. Dr. Campos começa nesta época a formar e qualificar equipes para trabalharem segundo a filosofia do Sarah: oferecer a todos os pacientes o melhor tratamento possível. Hospital limpo, equipamentos altamente funcionais, diagnóstico em equipe, infecção hospital intolerável, limpeza máxima, gentileza como mandamento. Médicos e profissionais de saúde trabalhando em tempo integral e com dedicação exclusiva. Ingresso por concurso. Pobres ou ricos que entravam ali (“este hospital é de uma porta só e todos entram por ela”, ouvi dele mais de uma vez) se impressionavam com estas características. Elas permitiram que o Sarah se tornasse prova da viabilidade da saúde pública de qualidade.
Foi em 1977 que uma jovem estudante de psicologia começou a tocar flauta para os pacientes que tomavam sol no jardim. Ele se encantava com o hospital, queria contribuir de algum modo. Formada, entrou para a equipe que ele começava a formar. Hoje é a diretora-executiva e sucessora natural de Campos da Paz, uma neuro-psicóloga internacionalmente reconhecida por suas pesquisas e experiências no mapeamento das funções cerebrais em busca de caminhos novos para a reabilitação. Na foto, ela é a de cabelos longos, ouvindo uma “aula” de Campos da Paz.
Em 1991 o Sarah dá um salto. O Congresso aprova uma nova regra jurídica, transformando a antiga Fundação das Pioneiras Sociais numa Associação (de caráter privado), que irá gerir o Hospital com autonomia administrativa mediante contrato de gestão com a União. Haverá um conselho administrativo, com representantes da sociedade civil.
Os contratos de gestão nem sempre foram pacificamente negociados com o governo. Houve tempos de vacas magra, de ajustes fiscais que afetavam políticas sociais. Mas a Rede começou a ser formada com a criação da unidade do Maranhão. Depois vieram os hospitais de Salvador, Belo Horizonte, Fortaleza e Rio de Janeiro. Em 2004 foi inaugurado o Sarah Lago Norte, o Centro Internacional de Neurociências. Hoje moro bem perto dele e gosto de olhar para aquela bela plataforma branca, às margens do lago, onde os paraplégicos podem se exercitar e são levados a passear de barco. Aquele é mais um projeto do arquiteto Lelé, que também partiu há alguns meses. Ele projetou todos os hospitais da rede, com suas linhas suaves e harmônicas. Esta é a história do Sarah, que é a história de seu incansável criador. Vieram ainda unidades em Macapá e Belém, indo ao encontro dos pacientes do Norte/Nordeste e da Amazônia que sempre buscaram o socorro do Sarah em Brasília.
Quando morre um homem que empregou sua vontade, seu trabalho e seu conhecimento na construção de uma obra assim, o país fica mais pobre. Ele deixa o vazio de sua ausência, de seu papel singular na historia de seu tempo. Doutor Campos tinha clareza disso. De que ele passaria, a instituição teria que sobreviver, para continuar servindo, tratando pacientes não como doentes, como pessoas. Tratando pessoas com deficiências como pessoas inteiras, maiores que suas deficiências. Explorando o que elas podem, o que elas têm, não o que lhes falta.
Ele formou gerações de profissionais de saúde e uma crença no modo Sarah de praticar a saúde pública. Para sorte nossa, preparou uma sucessora. Há alguns anos passou a diretoria-executiva para a dra. Lucia Braga e ficou no papel de cirurgião chefe e presidente do Conselho. Ela, que também dedicou sua vida ao Sarah, é jovem, brilhante e também dotada de enorme energia, com certeza continuará no leme, levando a nave.