Por Ribamar Bessa:
Na passagem dos anos 1960-70, Paris fervilhava de exilados, entre eles o cientista social grego Nicos Poulantzas, que tinha a idade de Cristo quando publicou “Poder Político e Classes Sociais“, logo após maio de 1968. Ele era, então, professor na Universidade de Vincennes – Paris 8 – e tinha dois brasileiros como assistentes: Michel Lowy e Emir Sader. Seu livro, que vendia mais do que pão quente, pode nos ajudar a compreender o que está acontecendo hoje no Brasil, o papel da mídia e dos três poderes.
Lembrei agora de Poulantzas por três razões. A primeira foi o anúncio do Temer (PMDB vixe, vixe) de que vai escolher para a vaga no STF alguém “técnico, isento e independente”, de conformidade com os atributos que ele jura serem os do Poder Judiciário. Em segundo lugar, a notícia publicada na Folha SP (02/02) de que um de seus articulistas, o senador Aécio Neves (PSDB vixe, vixe), recebeu propina para fraudar licitação. Finalmente, informações sobre o livro Imprensa e escravidão que me foi indicado por um amigo.
Propina do Aécio
A manchete da Folha – “AÉCIO ACERTOU FRAUDE EM LICITAÇÃO, DIZ ODEBRECHT” – traz trechos da delação premiada de Benedicto Júnior, ex-presidente da Odebrecht Infraestrutura. Aécio, então governador de Minas, se reuniu com o agora delator para fraudar licitação na obra da Cidade Administrativa, sede do governo inaugurada em 2010, em troca de propina de até 3% sobre o total dos contratos de R$ 2,1 bilhões. A operação, intermediada por Oswaldo Borges, o Oswaldinho, foi confirmada por outras delações já homologadas pela presidente do STF. Um escândalo!
Liguei o Jornal Nacional para ver aquele cano de esgoto enferrujado jorrando a grana da propina paga a Aécio e para ouvir os panelaços. Nada. Com Lula, a cloaca enferrujada da Globo borbulhava e espirrava cédulas que dariam para comprar 200 mil pedalinhos. Mudei para a Globo News. Nada. Cadê o organograma do procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol, mostrando o comandante do esquema de corrupção em Minas? Algum telefonema de Aécio gravado e repassado por Sérgio Moro à emissora? Seria ele levado coercitivamente para depor? Necas de pitibiribas.
A mídia e o parlamento
Foi então que me chegou a mensagem de um amigo, Hans Trein, que durante anos coordenou na Amazônia a Pastoral Indígena da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Ele me recomendou a leitura de “Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1859), de Alain El Youssef, que pesquisou os jornais publicados no Rio nesse período e verificou que o papel da mídia foi apresentar a escravidão como algo natural, normal e imprescindível ao desenvolvimento do país. Muita gente, coitada, ficou convencida disso.
Ainda não li, mas segundo resenha de José Tadeu Arantes, o livro revela que “jornais mais conservadores que o próprio Império bloquearam a lei abolicionista e atrasaram em duas décadas o fim do tráfico de africanos para o Brasil”. O grupo escravocrata que atuava no parlamento imperial controlava os jornais e “silenciava todas as opiniões contrárias ao tráfico”. Parlamentares e imprensa criaram “uma espécie de consenso, abafando rapidamente as vozes que tentaram se levantar contra ele”. “Saquaremas” e “Luzias” unidos, jamais serão vencidos.
E qual foi a função do Poder Judiciário nessa história?
– Temos uma hipótese interessante, um filtro para os historiadores analisarem, se o Brasil não estaria periodicamente sempre sendo atrasado por conluios entre ruralistas, mídia e Judiciário, depois de breves períodos de governos comprometidos com projetos mais sociais – comenta meu amigo Hans.
Moro privilegiado
E é aqui que entra Poulantzas, cujo modelo de análise nos permite questionar a ideia que querem enfiar em nossa cabeça de que o Judiciário é imparcial, apartidário, neutro e equânime. Para o professor da Universidade de Paris, o Estado, que não é um bloco monolítico, representa interesses das classes dominantes, no plural, que se aliam para exercer o poder político. Mas essa aliança só funciona se classes e suas frações, representadas por partidos políticos, se põem de acordo para escolher, por determinado período, a fração hegemônica. Ou seja: todas mandam, mas há uma alternância na definição de quem manda mais.
As frações do capital financeiro, do capital industrial, do agronegócio, dos ruralistas, embora tenham interesses específicos que às vezes se chocam, estão unidas para defender a propriedade privada dos meios de produção e os privilégios de classe. Na repartição do poder entre os partidos, uma fração pode ser hegemônica no Executivo, a outra no Legislativo e uma terceira no Judiciário, mas todas estão mancomunadas. Historicamente, o Poder Judiciário sempre foi exercido em conluio – como sugere Hans – com o poder econômico e político. Qual é a fração hegemônica hoje no Supremo Tribunal Federal?
Quando o STF impede Lula de ser ministro de Dilma para não obter foro privilegiado e semanas depois permite que Moreira Franco, citado quase 40 vezes nas delações, seja nomeado para ministério criado com esse fim, só os ingênuos acreditam que o STF age “tecnicamente, com isenção”. Como escreveu o Macaco Simão, Moreira tem foro privilegiado e “Aécio tem Moro privilegiado”, por isso não vão presos. A foto indecente da dupla Aécio e Moro flagrou a promiscuidade, como uma das evidências de que o Poder Judiciário, partidarizado, é político até o tucupi.
Muita gente, coitada, ficou convencida de que a Lava Jato, que tanta esperança despertou, lutava contra a corrupção. Que existem juízes bem intencionados querendo lavar o Brasil, não há dúvidas. Afinal, o Judiciário, da mesma forma que a mídia, também não é monolítico. Mas suspeito que quem está vencendo é a banda podre. O papel dos jornais televisivos nessa questão foi similar ao da imprensa na luta contra a escravidão: a busca de um consenso, ocultando que atuavam politicamente.
Meses antes de se suicidar em 1979, Poulantzas concedeu longa entrevista a Stuart Hall e Alan Hunt publicada na revista “Marxism Today“, onde fala de sua vida, de sua militância, de suas pesquisas, de seus livros, discutidos nas principais universidades do mundo. Segundo Michel Lowy, “a experiência do Orçamento Participativo no Brasil, em Porto Alegre, é um exemplo de combinação de democracia representativa e democracia direta no sentido que lhe dá Poulantzas”.