É de bom conselho não tomar a realidade pela sua aparência, nem confundir os movimentos tectônicos com as marolas que se quebram na praia. Se o pessimismo pode levar ao niilismo inconsequente e irresponsável, o otimismo panglossiano é o caminho mais curto para o suicídio político. Tampouco recomenda-se menosprezar a ameaça do adversário no intuito de torná-la menos perigosa, porque a expectativa do melhor não é um determinismo histórico, porque não há vitórias políticas preestabelecidas (nem necessariamente duradouras), e porque o pior é sempre possível.
O bolsonarismo (seja lá o que for) é uma ameaça que caminha a passos largos em nossa direção. Aguarda-o um espaço vazio, devastado, pronto para ser ocupado. Não há como desconhecer nem a clareza de seu discurso nem a reiterada decisão de levá-lo a cabo. Muito menos ignorar o significado das forças que o alimentam. A soma patológica de obsessão ideológica e descolamento da realidade afasta a grei autoritária de qualquer concessão à racionalidade.
O governo em instalação, mas já em serviço, tem plenas condições de levar a cabo as ameaças com as quais o capitão e seus sequazes de maior ou menor coturno nos acenam desde a campanha eleitoral. O astrólogo Olavo de Carvalho, o rasputin de Richmond, é o que é – ou seja, não é filósofo nem construiu qualquer ordem de pensamento lógico digno de consideração – mas é o guru do capitão presidente e ambos pensam e agem em sintonia, quando está em jogo a opção entre o atraso, de qualquer ponto de vista, e o progresso.
As linhas gerais do governo que inspira foram ditadas em recente entrevista à jornalista Júlia Zaremba (Folha de SP, 28/11/2018): 1) economia de “livre mercado”; 2) império da moral judaico-cristã; 3) lei e ordem e 4) “democracia” plebiscitaria, contornando o Congresso e valendo-se de instrumentos da democracia participativa para o fortalecimento do projeto de uma virtual ditadura.
A extinção do Ministério do Trabalho (criado por Vargas em 1930) é simbólica, como o desprezo pelas áreas de Educação e Cultura, a repressão ao indigenismo, o cerceamento à defesa do meio ambiente, aos direitos sociais e identitários. O desprezo pela escola pública, que possibilita a ascensão social dos mais pobres.
Por fim e como coroamento: o desprezo pela soberania nacional.
O guru, os filhos e o capitão – exatamente nesta ordem –, mais do que a desmontagem do que se conhece hoje como sistema democrático (com todas as suas conhecidas mazelas sociais), prometem a ‘reinvenção’ do Brasil e, de quebra, se dermos trégua, a ‘reinvenção’ dos brasileiros, expelindo, se possível os dissidentes para Cuba ou Venezuela..
O governo em instalação – mas já em serviço – vicejará em terreno o mais favorável possível para a instauração de um Estado de exceção permanente, condição indispensável para uma governança autoritária que não relutará diante de qualquer oportunidade de, dando um passo à frente, descambar para o totalitarismo. Emergindo da consagração eleitoral, ancorado no apoio das grandes massas, o novo governo terá em suas mãos um país com instituições políticas despedaçadas ou desmoralizadas, como os poderes judiciário e legislativo de nossos dias, e uma democracia representativa sem partidos, facilmente ordenada pela manipulação do que se convencionou batizar de “redes sociais” (WhatsApp, Twitter, Facebook, Instagram…) e, com elas, a indústria das fake news, um iceberg do qual só conhecemos a ponta exposta – e já mostrou do que é capaz no Brexit, e nas eleições de Trump e do capitão.
Trata-se, em suma, de convite quase irresistível à aventura institucional, tanto mais irresistível e provável enquanto esse governo dispuser, como conta agora, com apoio popular, apoio dos grandes meios de comunicação e a sustentação militar óbvia e ostensiva.
Mais do que um governo presidido por um militar de lamentável currículo, esse governo, será, de fato, a primeira experiência de implantação no Brasil, pela via eleitoral, de um governo militar, pois essa é sua natureza; atestam-nos sua origem, seu comando orgânico e ideológico, sua composição.
Passados 23 anos após o término oficial da última ditadura, as forças armadas retomam o perdido papel de preeminência sobre a vida nacional, como se fossem, mais do que um imperial Poder Moderador, um ‘Estado à parte’, uma ‘nação à parte’ da nação e do país institucionalizado.
Essa eleição, e o governo que dela brotará, nada guardam da eleição do marechal Enrico Gaspar Dutra e de seu quinquênio, nada obstante o reacionarismo congênito e entreguista que voltaria à tona muitos anos passados com a ascensão do marechal Castello Branco. Dutra, ademais de candidato apoiado por Getúlio Vargas, disputava o pleito com outro militar, o brigadeiro Eduardo Gomes, igualmente golpista, mas vinculado ao udenismo antivarguista e antitrabalhista que se consagraria no 1º de abril de 1964. O marechal Dutra chefiou um governo civil, enquanto o capitão Messias (mais precisamente a conjunção que assume o Planalto) chefiará um governo militar, militar na concepção, militar na ideologia, militar na ocupação dos espaços. Desse papel, de suportes do regime, e portanto por ele responsáveis perante a História, não se livrarão facilmente as forças armadas, nada obstante os receios que começam a habitar as cabeças daqueles cinco-estrelas que decidiram conhecer um mínimo de nossa História.
Não há evidência, porém, de que essa conjunção seja de aço. Resta ver como se comportarão – pois contradições virão à tona – as facções que, após garantirem a eleição, garantem hoje o governo e sua estabilidade, disputam seu rumo político-ideológico enquanto ditam e comandam sua estrutura, a saber, os militares e as tradicionais forças da repressão (as polícias civis e militares e agora o Ministério Publico e setores destacados do judiciário), o chamado mercado (compreendendo mesmo o setor produtivo), as corporações e os interesses geopolíticos dos EUA, sejam econômicos, sejam puramente estratégico-militares.
As dúvidas devem ser muitas porque não sabemos até quando permanecerão silentes e omissos aqueles setores de dentro e fora da caserna comprometidos com as teses (militares) identificadas com a defesa da economia nacional, da soberania e da independência, claramente postas em questão, quando a doutrina do auto-respeito é substituída pela proto-ideologia da sabujice (vitoriosa com o primeiro marechal presidente e desconstituída por seus sucessores até a ascensão do primeiro Fernando).
A História dirá, e talvez não demore muito, como se comporão os diversos grupos que entre si dividem o poder de fato.
Há lideranças militares em postos-chave que insistem a/na preeminência do interesse nacional, como há as que se dizem convencidas da inevitabilidade de nossa vinculação à geopolítica estadunidense. Para tais setores o conflito EUA x China-Rússia é um dado objetivo que nos deixa sem alternativa senão dela participar representando os interesses do grande irmão do Norte no Atlântico Sul, controlando, em seu nome, a América do Sul e a África Ocidental. Paralelamente, movendo-se entre os comandantes, atuam com desenvoltura e loquacidade o capitão e seu entrecho familiar, para quem nosso único objetivo é atender, não exatamente aos interesses dos EUA, mas à política de Trump, revivendo entre nós a “relação carnal” proposta à Argentina pelo lamentável presidente Menem. Esta tragédia está nas falas do guru, do capitão-presidente, dos filhos parlamentares e do diplomata que nomeou para cuidar das relações exteriores, conhecido por seus colegas como “pastor tarja preta”.
Não nos aguardam nem a serenidade dos lagos suíços nem a ‘normalidade’ sonhada pelos simplórios de sempre, mas a agudização dos conflitos que a esquerda não deve temer, pois é a promessa de frutos após o rotundo fracasso da conciliação de classes intentada pelos nossos governos e a renúncia dos partidos de centro-esquerda à luta ideológica.
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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia