Fernando de Barros e Silva (Piauí, nº 175), abre seu artigo sobre “o que muda com a entrada de Lula na disputa pela sucessão de Bolsonaro” afirmando que “Só há uma certeza política no Brasil de hoje: Lula será candidato à Presidência da República no ano que vem”, o que me lembra as antecipações “científicas” de conhecidos analistas políticos sobre as eleições de 2018: nenhuma acertou no alvo. Pois a política não é ciência e o processo social não pode ser reduzido a meia dúzia de tabelas ou gráficos. Armado e bem equipado em números e em suas projeções, Alberto Carlos Almeida anunciava (O voto do brasileiro) que “o funcionamento de nosso sistema político é regular. É previsível”. Daí prever, “à luz de nossa experiência passada” que as eleições de 2018 repetiriam o padrão das eleições presidenciais anteriores, mantendo a série de disputas entre o PSDB e o PT. Já Samuel Pessoa, no prefácio ao livro acima referido, fiando-se nas ferramentas ali fornecidas, garantia que teríamos em 2018 um segundo turno entre Jacques Wagner e Geraldo Alckmin.
Mais sábio (ou menos imprudente) que nossos cientistas, o velho Magalhães Pinto dizia que a política era como a nuvem no céu: você olha, ela tem um desenho, volta a olhar, ele tem outro.
Os jornais já anunciam análises que indicam um segundo turno em 2022, que ele será disputado por Lula e o capitão, e que o ex-presidente será o vitorioso. A ferramenta científica é substituída pela bola de cristal de novos Nostradamus.
De minha parte não aposto, sequer, como fatos consumados, nas candidaturas de Lula e do capitão. Até 2022, o ex-presidente terá de enfrentar e vencer os mil e um obstáculos com os quais a casa-grande (que está atrás da Lava Jato, da prisão de Lula e de sua inelegibilidade) juncará seu eventual caminho de volta a Brasília. Relativamente ao capitão, é bom lembrar que na próxima semana a CPI da pandemia começará a trabalhar. Há, ainda, a crise econômica, a forme e o desemprego que assolam os lares brasileiros. Não pode ser certo que Bolsonaro superará tudo isso.
Essas questões querem simplesmente dizer que é puro achismo, desprovido de qualquer fundamentação fatual, decretar o que será um pleito eleitoral visto a mais de um ano e meio de distância. Ou seja: as apurações de intenção de voto futuro, e as análises que despertam, valem tanto quanto a interpretação do desenho das nuvens. Cabe lembrar que em 2018, antes do início oficial da campanha, a ciência cravava que Alckmin seria imbatível, com seu latifúndio de tempo de rádio e TV. Terminou em 4º, com 4,76% dos votos.
Aos navegantes de primeira viagem recomendo ligar o desconfiômetro; aos capitães de longo prazo sugiro voltar suas luzes para o processo social em pleno curso.
Alguns setores do campo popular, atiçados pelos bons presságios, já estão a comemorar a eleição de Lula à presidência como consequência inelutável das últimas decisões do Supremo. Evidentemente, não levam em consideração os artigos (e as advertências neles contidas) de Pedro Serrano na edição impressa desta Carta Capital. Ou, pior ainda, parece nada haverem aprendido com a história política de nosso país. Quando compreenderão que a ordem togada (de juízes de piso ao STF) constitui um aparelho do Estado a serviço dos interesses da classe dominante e da manutenção do statu quo? Que os tribunais, por isso mesmo, julgam e decidem em função da correlação de forças que fala atrás de cada sentença ou acórdão? O vai-e-vem de nossos ministros e seus votos de 2014 até ontem não nos sugerem nada?
Mas as “pesquisas” estão na praça, e contribuem para a construção de narrativas, antecipando sentimentos e emoções, como se o quadro de hoje, não sendo fato sociológico, pudesse ser congelado para ser revivido lá adiante. E, nestes termos, tudo têm para criar duvidas e sonhos junto a militantes, os mais vulneráveis, pois o grande eleitorado quer saber quando será vacinado, quando voltará a ter trabalho e comida na mesa.
Essas análises, que enchem as páginas políticas dos jornais, valem pouco ou nada, a não ser quando seu objetivo é embaralhar cartas. Pois é disso que se trata, desviar as atenções da questão agônica: o enfrentamento ao governo Bolsonaro, vale dizer, a defesa da vida, do emprego, da comida. Ao fim e ao cabo, as especulações querem dizer que os dados já foram postos no tabuleiro. Para a esquerda querem dizer: aquietem-se todos, pois Lula já está eleito. Mas ocorre que, a quase dois anos do pleito, todos sabemos, muita água ainda irá correr por debaixo da ponte. A começar pelo fato de que sequer o quadro de disputa, o rol das candidaturas, está definido. Se a extrema-direita se unifica na campanha pela reeleição do capitão, o “centro” (codinome de um ajuntamento que caminha da direita aos liberais) anda de Seca a Meca, lanterna de Diógenes na mão, à procura de um candidato de apelo popular.
De sua parte, esquerda, a centro-esquerda, as forças democráticas de um modo geral, não se podem ao luxo da segurança jurídica. É preciso ter em conta que tudo será feito, em todos os campos, para impedir a candidatura de Lula, sua eleição, sua posse. Ou alguém nessa seara ainda supõe que o adversário a enfrentar é o Sr. Jair Messias, quando ele simplesmente é o aríete de que se serviu e ainda se servirá em 2022 o complexo econômico-militar-político-midiático que engendrou a deposição de Dilma Rousseff, o governo títere de Michel Temer, e manipulou o processo eleitoral em 2018?
Considere-se que esse complexo continua íntegro (ressalvadas fissuras secundárias), e ainda mais forte, porque agora tem em mão os poderes ensejados pela presidência da república.
Mas se Lula não deve dormir sobre os louros da última vitória judicial, o capitão sabe que seu mandato pode, a qualquer momento, encontrar-se com um processo de impeachment apoiado na opinião pública.
O “centro” e a centro-direita não param de arengar contra o “conflito dos extremos”, a senha para anatematizar a emergência de uma candidatura de esquerda, posto que a candidatura da extrema-direita é dada como fato inarredável. Em síntese, para evitar os extremismos, que se impeça a candidatura de Lula ou de quem vier a representar as forças populares.
O cenário que se desenha para a candidatura de nosso campo é similar ao que a direita, civil-militar-midiática-financeira, construiu às vésperas das eleições de 1950, na condenação a Getúlio Vargas, e em 1955 no veto a Juscelino Kubitschek. A classe dominante e os militares durante 15 anos se haviam entendido, e muito bem, com Getúlio Vargas, presidente e ditador. O problema, portanto, não era o caudilho, mas o que ele passara a representar: a emergência das massas sob a toada do trabalhismo, associada à retomada do projeto de desenvolvimento nacional autônomo e a recuperação do projeto industrialista (que vinham do “Estado Novo”), interrompido pelo desastrado governo do marechal Eurico Dutra. De novo no poder, agora apoiado na soberania popular, Vargas criaria agências como o BNDE (depois BNDES), e o BNB, promoveria o desenvolvimento da indústria siderúrgica, patrocinaria a Petrobras e o monopólio estatal do petróleo e, entre outras iniciativas, estabeleceria as bases da futura Eletrobrás. Iniciativas sem as quais não teriam sido possíveis os “50 anos em 5” de Juscelino Kubitscheck, cuja candidatura as mesmas forças da reação tentaram evitar, e cuja posse tentaram impedir com um golpe de Estado frustrado.
Não sem razão, são esses projetos que, combatidos contra Vargas (e justificadores de sua deposição) e contra Juscelino (cassado em 1964) vêm sendo demonizados pelo neoliberalismo, desde Collor e FHC, que anunciou, como projeto, o “fim da era Vagas”. Essas forças não foram derrotadas e não devemos nos iludir com a reação da direita bem comportada – presente na grande mídia – contra os maus modos do capitão: a questão democrática é uma pura aparência, pois o cerne da questão é a politica econômica, e em torno de sua defesa todos se unem: “centro”, direita, extrema-direita e o dito “mercado”.
Presentemente somos governados pelo atraso, pela regressão, anulando as possibilidades de afirmação daquela que poderia ser a mais feliz civilização dos trópicos. A questão que nos aflige, portanto, não se encerra na indispensável derrota do capitão; não se reduz mesmo à eleição de Lula, embora este seja um ponto de partida: trata-se de construir uma nova correlação de forças capaz de romper com o império secular dos interesses da minoria governante, procuradora do 1% de brancos milionários que controlam a economia nacional e por isso ditam o andamento da política. Uma correlação de forças que libere o nosso candidato, seja ele quem for, de firmar uma nova “Carta aos brasileiros”, ou nomear para o Banco Central um funcionário do Banco de Boston.
Conhecido o jogo da direita, cabe à esquerda e à centro-esquerda, mas de forma muito especial à esquerda socialista, estabelecer sua estratégia que é, parece-me, preparando-se para 2022, aprofundar a oposição ao governo, mas diferenciando-se do discurso liberal. Vale dizer, assumindo o embate ideológico, denunciando o caráter classista e antinacional da ordem governante, para, pari passu, anunciar as reformas estruturais, de fundo, políticas e econômicas, que podem ser levadas a cabo pelos socialistas mesmo no atual regime.
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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia