O acesso do fisco a informações protegidas por sigilo bancário sempre foi matéria controversa, porque contrapõe o poder/dever de fiscalizar, fundado no interesse público, com a preservação da intimidade das pessoas, qualificada como direito fundamental.
A resolução desse conflito de razões pode ser resolvida pela imposição de limites e requisitos ao acesso, acompanhados da exigência de sigilo, o que confere equilíbrio entre a pretensão do Estado e os direitos do cidadão.
No Brasil, a Receita Federal, até o início dos anos noventa, não conhecia restrições no acesso a informações bancárias, em procedimentos de fiscalização.
Condutas excessivas, praticadas pela direção daquele órgão, geraram uma reação dos contribuintes, resultando em sentenças que condicionaram o acesso a informações bancárias à autorização judicial, sob a alegação de que inexistia adequado fundamento legal para o exercício daquela prerrogativa. Esse entendimento implicou redução na capacidade fiscalizatória.
Posteriormente, quando da criação da CPMF, em 1996, o legislador ordinário obrigou-se a recorrer a um tortuoso recurso para possibilitar a fiscalização daquele tributo, ao estabelecer, no art. 11, § 3º, da Lei nº 9.311, que essa competência não facultaria utilizar as informações obtidas para constituir créditos de outros tributos.
Resguardado o sigilo individual, dados coligidos da CMPF permitiram mostrar à sociedade brasileira, de forma agregada,escandalosas discrepâncias entre a movimentação financeira e a renda ou o status cadastral dos contribuintes. A Receita, contudo, estava impedida de proceder aos lançamentos, por vedação legal.
Essa desarrazoada limitação foi sanada com a nova redação conferida ao art. 11, § 3º, da Lei nº 9.311, que suprimiu a restrição imposta ao lançamento de outros tributos, preservando, todavia, o sigilo fiscal.
Na esteira dessas mudanças legislativas, foi sancionada, em 10 de janeiro de 2001, a Lei Complementar nº 105, dispondo sobre o sigilo de operações no âmbito das instituições financeiras. Essa lei, tecnicamente muito qualificada, admitiu o acesso do Fisco às informações protegidas por sigilo bancário, de forma incidental (art. 6º), quando decorrente de procedimento instaurado, ou de forma sistêmica (art. 5º), desde que as informações permitissem reconhecer apenas a titularidade da conta e o montante movimentado, vedada a inserção de qualquer elemento que permitisse identificar a origem ou a natureza dos gastos.
O acesso sistêmico permitia obter de forma permanente aquelas informações que a CPMF oferecia em caráter provisório. Já o acesso incidental, de acordo com Decreto nº 3.724, simbolicamente editado na mesma data de sanção da Lei Complementar nº 105, ficou restrito a uma lista positiva de casos de sonegação e condicionado à anuência da autoridade superior, à prévia notificação do contribuinte e à expedição de um Mandato de Procedimento Fiscal (MPF). Na prática, correspondia tão somente a transferir para a autoridade fiscal o sigilo tutelado pelas instituições financeiras e pelos órgãos responsáveis pela supervisão bancária.
Essa competência revelou-se um instrumento valioso no enfretamento de práticas cada vez mais sofisticadas de lavagem de dinheiro, sonegação e elisão fiscal.
De mais a mais, não se pode esquecer que parcela da renda movimentada pelo contribuinte é, em tese, tributável e, portanto, constitui receita pública. Por isso mesmo, as declarações de bens apresentadas anualmente contêm registros sobre o saldo das contas bancárias e das aplicações financeiras, como meio para avaliar a evolução patrimonial e a renda tributável.
Sob o ponto de vista operacional, parece também pouco razoável submeter à autorização judicial o acesso à informação sobre a renda tributada que transita pelas instituições financeiras, pois iria inequivocamente ampliar as já assustadoras taxas de congestionamento de processos judiciais.
Os recentes e lamentáveis vazamentos de informações fiscais não decorrem de sistemas, reconhecidamente seguros, nem da ausência de normas, mas da conduta deletéria de servidores, à semelhança do que ocorreu com os dados vazados pela Wikileaks. Infelizmente, a Receita tem assumido uma atitude condescendente diante de tais fatos. Foi chocante a decisão de entender como motivados mais de 30 mil acessos praticados por um servidor, em curto período.
Essa atitude fragiliza o acolhimento, na Justiça, da Lei Complementar nº 105. A interpretação da norma inevitavelmente interage com sua aplicação. É indispensável, portanto, que a Receita demonstre firme comprometimento com o respeito aos direitos do contribuinte.
As contramedidas previstas na MP nº 507, em tramitação no Congresso, são insuficientes, sem falar no burocratismo. As regras do Decreto nº 3.724 e a instituição do MPF deveriam ser disciplinadas em lei. As punições deveriam ser exemplares. Se essas e outras medidas não forem adotadas, receio que as decisões judiciais possam ser desfavoráveis ao Fisco.
Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal