Não pode mais haver dúvida de que está em curso, à vista de todos, maquinado à luz do dia, um projeto golpista, e que seu líder é o próprio presidente da República, o capitão da reserva remunerada Jair Messias Bolsonaro, descartado da carreira militar por indisciplina e hoje, em face das circunstâncias, líder de generais de variado número de estrelas. É irrelevante, a esta altura, discutir em qual escaninho das classificações acadêmicas se enquadra o projeto que ameaça a nação. Fascista ou protofascista, ou fascistóide ou isso ou aquilo, a reprodução do atual governo será sempre uma ameaça autoritária, reacionária e obscurantista. Ninguém tenha dúvida dos riscos que nos rondam: rompidos os frágeis limites da ordem democrático-constitucional, o arbítrio reinará como aluvião. Todo presidente autocrático, como Bolsonaro tenta ser, é candidato a ditador.
Quando os liberais se convencerão dessa lição cediça? Não lhes teria bastado, para a aprendizagem, a experiência de 1964, quando, sob a ficção de “salvar a democracia”, terminaram apoiando um golpe militar que nos legou 21 anos de ditadura? No governo, sem projeto de Brasil, sem consciência histórica, inculto mas presumido, o capitão vai dando larga aos seus delírios.
A trama golpista, que visa de imediato à maior concentração de poder, a ser exercido sem os limites e controles constitucionais de hoje, se trava à luz do dia, nos atos e nas falas do capitão, de seus familiares e asseclas, diante da leniência das instituições, acovardadas. Fingem reagir. Por enquanto, tudo não passa de jogo de cena. Seguidamente o capitão (cercado de generais) testa a resiliência da institucionalidade, e seguidamente avança, passo a passo, porque as instituições, desafiadas, recuam. Recuam os liberais após havê-lo incensado, como a grande imprensa – contra a qual ele agora se volta. Desprovidos, de qualquer projeto de construção nacional, liberais, conservadores de variada gama, o grande capital, os rentistas da FIESP e da CNI, e sua grande mídia, somados aos ressentidos em geral, uniram-se em torno do ódio ao petismo, atiçados pelo medo ante uma falsa ascensão política das massas, e, finalmente, por um anticomunismo artificial e cretino nessa altura do terceiro milênio.
O bolsonarismo não é, claro, produto do acaso, mas deita raízes no processo sócio-político recente. Resulta da conjunção de muitos fatores, como a campanha da grande imprensa, dia após dia, em todos os seus veículos e por todos os meios, desmoralizando a política e os políticos, apresentando o Estado e a política como o antro exclusivo da corrupção, criando o vazio no qual sempre crescem as mensagens messiânicas e salvacionistas. Desde 2014, associados, grande imprensa, juízes de piso e procuradores do ministério público utilizaram a lava jato para desmoralizar a vida política, atacar o STF e o Congresso. Os jornalões, os grandes empresários da comunicação se assustam hoje com o monstro que criaram, porque agora ele ameaça devorá-los. Queriam o quê? O bolsonarismo – isto é, a emergência de uma extrema-direita de bases populares – é filho do oportunismo das lideranças liberais que, repetindo o erro crasso dos social-democratas que na Itália apoiaram a ascensão de Mussolini, viram no apelo eleitoral do capitão um instrumento de conquista do poder seguidamente negado pelas urnas. Adotaram-no como antídoto ao petismo e às esquerdas, ignorando que o veneno terminaria por ferir de morte seus aliados, que um dia nutriram o sonho de mantê-lo sob controle. A ascensão do deputado irrelevante, abaixo de medíocre, é fruto da leniência do chamado grupo democrático e da renitente covardia das instituições, dos coronéis e generais que terminaram por transformar sua expulsão do exército no prêmio de uma reserva remunerada à leniência da câmara dos deputados e do judiciário diante do rol de crimes que cometeu durante os 28 anos de deputado do baixo clero.
Sua eleição, alimentada por alianças equivocadas como a do tucanato suicida, também muito deveu a omissões de líderes conservadores e de centro-esquerda que, entre o primeiro e o segundo turnos, foram gastar em doces vilegiaturas na europa seus estoques de vaidades ofendidas, dando uma banana para os interesses do país e de seu povo. O resultado está exposto. Seja qual for o destino do atual mandato, já temos interrompida a trajetória democrático-progressista que, com altos e baixos, vivia a república desde a redemocratização de 1988.
Fique a lição, para quem só aprende apanhando.
Desde que se investiu no cargo, sem de fato assumir a governança (para a qual jamais esteve preparado) e as responsabilidades da presidência, o capitão (presidente inepto que se revela um estorvo quando a pandemia negada pela sua irresponsabilidade e ignorância ameaça a vida de milhares de brasileiros, principalmente dos mais pobres) se esmera em incentivar a cizânia, minar a confiança popular nas eleições – chega ao absurdo de espalhar mentiras sobre o processo eleitoral que o elegeu, acusando-o de fraude! –, tenta jogar as massas contra o congresso e o poder judiciário, transforma o poder executivo num bunker do obscurantismo e move desprezo contra a cultura e as artes, a ciência (afinal, trata-se de um terraplanista!), a pesquisa e, finalmente, ao conhecimento.
Loucura? Não apenas. Método, também.
Em momento de grave crise, que aponta para inimagináveis provações de nosso povo (a obscena desigualdade social brasileira fará dos mais pobres as maiores vítimas da coronavírus), o capitão instiga o conflito, de que carece para manter em linha seus seguidores e suas tropas que avançarão sobre o território democrático enquanto desfrutarem de liberdade de ação.
A periculosidade do capitão já é identificada pela grande maioria da população. O panelaço dos últimos dias pode ser o réquiem de seu projeto. O descrédito, a decepção já tomam conta de parcelas majoritárias de nosso povo. Mas há muito mais tempo Bolsonaro poderia ter sido desnudado como farsante, não fosse o apoio que lhe emprestou a grande mídia e a covardia das lideranças políticas. Além do recuo tático das esquerdas, contaminando uma oposição que se queixa do distanciamento das massas, porque não sabe liderá-las. Esse recuo – que é quase uma retirada da cena – é muito grave na contingência que vivemos, quando a insatisfação popular e o distanciamento progressivo da classe média, que começa a se desligar do bolsonarismo, estão a exigir lideranças firmes, palavras de ordem objetivas, longe seja do niilismo da pequeno-burguesia, seja do voluntarismo inconsequente de setores impacientes com a anomia política da esquerda.
Na crise, vem à cena a direita ‘civilizada’, e o presidente da câmara dos deputados, responsável pela aprovação da “pauta Guedes”, que desconstitui o Estado nacional e precariza os direitos dos trabalhadores, emerge, ora como primeiro-ministro de um parlamentarismo de fato que se insinua como projeto de salvação nacional ante a insolvência da presidência da República, ora como líder de um “poder moderador” que se oferece como guardião das instituições.
O capitão atenta contra a saúde pública, torna-se ele próprio vetor de contaminação, minimiza a gravidade da pandemia e ao mesmo tempo incentiva suas hordas e colunas a marcharem contra o congresso e o STF. E nos ameaça com novas e provocativas movimentações para o 31 de março. Que falta fazer? É plenamente explicável a hesitação dos liberais e o bovarismo de nossas lideranças de centro ou ditas social-democratas. Mas não se explica que os partidos e lideranças de esquerda se omitam em momento que pode ser decisivo para os destinos da democracia brasileira.
Espera-se uma palavra de ordem, a indicação de um caminho, a convergência de forças, um exemplo de unidade para as massas dispersas à espera de liderança. A resposta que se obtém é um profundo vazio, um estrondoso silêncio de organizações, partidos e lideranças comprometidas com os interesses dos trabalhadores e das grandes massas populares, que se sentem, assim, desprotegidas, porque sós.
Os golpes de Estado são operados dentro do poder, são sustentados pelas forças armadas (sem as quais não prosperam) mas dependem de certo nível de apoio popular. O capitão sabe disso e age com consciência quando intenta o diálogo direto com suas bases, que procura manter mobilizadas. As instituições simplesmente assistem a montagem do cenário. Quando lhes cabe agir, intervêm em nome dos interesses da classe dominante, a minoria branca formada por proprietários e rentistas. Isso quer dizer que a disputa dar-se-á na sociedade, junto às massas, na mobilização popular, independentemente do processo eleitoral, e muito antes dele, pois atravessamos uma pandemia cuja virulência e extensão ainda estamos longe de conhecer, embora saibamos que o capitão não tem condições psíquicas, cognitivas e éticas para conduzir o país nessa travessia pelo desconhecido.
Conhecida já é a brutal crise econômica que deixará um rasto de miséria que pode ser o detonador de profunda convulsão social.
A história dirá se a esquerda brasileira soube exercer o papel de vanguarda que as contingências lhe cobram.