Ser corregedor é cortar na própria carne. O dicionário define: “correger” + “dor”. Trata-se do magistrado a quem compete corrigir os erros e abusos das autoridades judiciárias e serventuários da Justiça, promovendo-lhes responsabilidade funcional. Corrigir é endireitar, concertar, eliminar, suprimir erro, castigar, censurar, repreender.
Esta é a função constitucional do corregedor-geral da Justiça, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Difícil imaginar, na administração da Justiça, função mais dolorosa.
Ou responsabilidade maior.
O corregedor é um magistrado dilacerado entre o homem e a função. Faz parte da corporação. É colega. Muitas vezes, é amigo. Conhece o que deve conhecer, mas sabe muito mais.
A tendência da corporação é lhe cobrar, se não fidelidade, pelo menos compreensão. Se não ação, pelo menos discrição. Se não severidade, pelo menos abrandamentos.
Em vez de investigações, negociações. Mas a própria função só se justifica se for além dessas intrapressões corporativas, humanamente compreensíveis, mas institucionalmente inadequadas.
O interesse público não é a soma dos interesses das corporações, de magistrados ou não. O interesse público fundamental é impedir que o todo, a nação, seu patrimônio e sua Justiça, seja apropriado pela parte, a corporação.
Provavelmente reconhecendo essas realidades, o ministro Peluso certa vez disse que era necessária entidade acima das corregedorias locais dos tribunais, pois estas não funcionavam a contento. É o CNJ.
A travessia de um corregedor é mar revolto de incompreensões.
Não rara vez, seus pares acham que se excedeu. Simultaneamente, a opinião pública acha que pouco fez. Incompreensões, ataques e críticas exigem do corregedor altivez, resignação, espanto e indignação silenciosos.
Nesta travessia que sabe ser efêmera, mas plena de eternidades, muitos corregedores se abatem.
Muitos se autoparalisam. O demasiadamente humano se sobrepõe ao necessariamente institucional.
São poucos os corregedores a ter sucesso e a se elevar no respeito amargo dos pares e na admiração esperançosa dos usuários da Justiça. O corregedor-geral ministro Gilson Dipp, que, após dois anos, esta semana deixa o cargo para a ministra Eliana Calmon, no CNJ, teve sucesso.
Não basta a liderança do saber, é preciso a liderança da coragem.
Dipp teve a coragem do antidestino. Acabou com a regra de que todo processo contra juízes é, por definição, sigiloso. Inverteu: a regra é a transparência, o sigilo é exceção.
Teve coragem de abrir inquéritos, processar e propor a punição de presidentes, corregedores e desembargadores, que tentam agora a tática dos recursos suspensivos e protelatórios contra fatos provados, confessados e incontestados.
Teve coragem de fazer do CNJ não o fiscalizador de pequenos tribunais, do Norte e Nordeste. Inspecionou os quatro grandes: São Paulo, Rio, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Teve coragem de legalizar mais de 5.000 cartórios em situação inconstitucional. Tudo fez para moralizar concursos de cartórios e juízes. Se a sociedade notar nepotismos e imoralidades nos concursos, os pés do gigante serão de barro.
Aqui na Folha, Dipp deu entrevista histórica (“Magistratura não tem blindagem contra corrupção”, 23/8). Poucos criticaram tanto e tão a favor, objetiva e esperançosamente, o Poder Judiciário.
A visão crítica que a sociedade ainda tem do Judiciário deve ser temperada com o entender da complexidade e dificuldades administrativas, políticas e profissionais, leis ultrapassadas, com que se depara a maioria dos corregedores.
Não haverá novas travessias sem que a mídia e a sociedade critiquem, mas também elogiem, corregedores que buscam compromisso maior com a Justiça, magistrados e o Estado democrático de Direito. O ministro Gilson Dipp fez a travessia.
Honrou o cargo e a magistratura.
Cumpriu a Constituição.
(*) Transcrito da FOLHA DE SÃO PAULO.
JOAQUIM FALCÃO, mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA) e doutor em educação pela Universidade de Genebra (Suíça), é professor de direito constitucional e diretor da Escola de Direito da FGV-RJ. Foi membro do Conselho Nacional de Justiça.
parabéns pelo artigo, a nossa justiça publica precisa ser, realmente, investigada, pois, a tendencia é transformar o que é público em particular.
carlos roberto micelli
oab-sp, 39.102.