O escritor Oscar Wilde fez uma crítica literária impiedosa de um livro que ele não leu como, depois, confessou. Questionado sobre a legitimidade de tal julgamento, ironizou:
– Nunca leio os livros que critico para não me deixar influenciar.
Não segui o seu conselho. Li de cabo a rabo o “Dicionário de Turismo”, de Robério Braga, eterno Secretário de Cultura do Amazonas. Dessa forma, peço desculpas ao leitor se perdi a objetividade e me deixei fascinar pelas pérolas que lá encontrei.
Quem me vendeu o peixe foi Elson Farias, um poeta dos bons, que escreveu a orelha do livro e nos garante que pode ser útil aos turistas, agentes de viagem e profissionais do setor. Acreditei. Comprei um exemplar.
O livro foi impresso em Erechim (RS), financiado pela Fundação Lourenço Braga, de Manaus, que por acaso pertence à família do autor. Para testá-lo, imaginei como poderia ser usado por um turista gaúcho que quer conhecer a Amazônia. A primeira indecisão do Gauchão é na compra das passagens. Consulta, então, o dicionário e lá, na letra “B” encontra duas definições geniais (p.46): “Bilhete de Ida – Aquele que cobre apenas uma direção”. “Bilhete de ida-e-volta – aquele que cobre a viagem de ida-e-volta”.
O Gauchão está indeciso: “será que entendi bem?”. Tira a dúvida com outro verbete na letra “I”, onde Berinho insiste: “Ida-e-volta – viagem em que o passageiro retorna, pelo mesmo itinerário, ao ponto de partida” (p.144).
O Gauchão hesita, porque deseja voltar a Porto Alegre por outra rota, via Alto Solimões, onde pretende ver as obras fantasmas do governador Dudu Braga. Mas, nesse caso, a viagem é de ida-e-volta ou só de ida? Na letra “V”, Berinho liquida de vez o assunto: “Viagem – Deslocamento de uma pessoa para localidade diversa de sua residência. Viagem de ida-e-volta, que pode ser realizada: a) de um ponto a outro com a volta pela mesma rota; b) com a volta por uma rota diferente” (p.235).
Barbaridade, tchê! O Gauchão fica devidamente esclarecido com a sacação do Berinho. Mas logo surge outro problema: “como é que transporto minhas roupas?”. Corre ao dicionário e lá encontra a resposta: “Mala – Do francês Malle. Caixa de madeira, lona, plástico ou fibra, usada para transporte de roupa e utensílios de viagem”. (p.186). (Nada é dito sobre “mala sem alça”, talvez porque o autor evite personalizar com dados autobiográficos).
Com as malas arrumadas, Gauchão quer saber para onde deve ir com sua bagagem. Graças a Deus, Berinho, com aquela lucidez que lhe é peculiar, previu tudo e dá a dica: “Aeroporto – Local ou aeródromo que possui instalações e serviços públicos permanentes para o funcionamento regular do tráfego aéreo, com embarque e desembarque de passageiros e de carga. Local constituído de uma ou mais pistas de aterragem” (p.14).
Louco para “aterrar” em Manaus, Gauchão chega ao aeroporto e enfrenta novo dilema: “Como carrego minha mala?”. Ah, seus problemas acabaram, Berinho é mais previdente do que as Organizações Tabajara. O gaúcho conferiu na letra “C”: “Carrinho de bagagem – Pequeno carro, de arame de aço inoxidável, destinado ao transporte, pelo passageiro, de bagagem pessoal nos aeroportos e estações ferroviárias” (pg.62).
Quem diria, hein? A genialidade dessa obra-prima da lexicografia amazonense está no detalhe. Graças às dicas do Berinho, Gauchão, empurrando seu carrinho, se pergunta o que vai fazer no fim de semana. Busca ajuda e encontra a seguinte jóia na letra “F”: “Fim de semana – período semanal que abrange normalmente o sábado e o domingo, e que possui, em turismo, expressão especial pela possibilidade que oferece para viagens de curta duração a tarifas reduzidas” (pg.118).
Gauchão capta a profundidade da coisa. O fim de semana do Berinho é, NORMALMENTE, sábado e domingo. Normalmente. Quem acha a definição estranha é porque desconhece que o fim de semana no Congresso Nacional abrange também segunda e terça-feira e, na Bahia, todos os dias da semana.
Gauchão decide, então, passar um fim de semana normal em Presidente Figueiredo. Aluga um carro. Quer encher o tanque. Abre o “Berinho”, buscando a solução. Encontra: “Bomba de gasolina – metonímia usada para denominar um conjunto de instalações destinadas a prover veículos motorizados de combustível, lubrificantes e afins (ing) – Gas station”.(pg. 48).
O turista lê o verbete para um motorista de taxi e indaga se tem alguma metonímia por perto. O cara respondeu: – “Fudereteu! Eu pensava que sabia o que era uma bomba de gasolina, mas agora deixei de saber”. Aqui faço uma crítica construtiva: se a próxima edição for ilustrada, com foto de um posto, o dicionário será mais útil ainda.
Finalmente, nosso Gauchão, que está com uma caganeira, encontra um posto. Procura desesperadamente o verbete WC ou banheiro, mas o dicionário não registra nenhum dos dois. Coitado, para se aliviar, ele corre pra trás de uma moita num terreno baldio e obra. Depois, no sufoco, usa as páginas arrancadas da obra do Berinho, comprovando sua utilidade.
As más línguas dizem que o conteúdo do livro é “para encher linguiça”. Berinho abre, por exemplo, na letra V o verbete “Vozes de Animais”, nos ensinando que “a abelha zumbra, a andorinha gazea, o camelo blatera, a onça esturra, o peru gruguleja e o burro azurra”, etc.etc (pg. 246). Em que isso pode servir ao turista? Confesso minha ignorância. Talvez o poeta Elson Farias, que avalizou a obra, possa nos dizer numa próxima edição.
Diante desse monumento lexicográfico, não faltarão invejosos para dizer que o dicionário do Berinho, com suas ululantes obviedades, representa a derrota do pensamento no Amazonas. Ledo engano! O autor da obra é membro da Academia Amazonense de Letras, que presidiu, e tem o aval absolutamente desinteressado de um poeta de renome. Além disso, é coerente na sua adesão ao poder, adotando a máxima: “Hay gobierno? Soy a favor”.
Com fidelidade canina, Berinho serviu a todos os governos na ditadura militar. Foi filiado à Arena, ao PFL, ao DEM, ao PTB e, se o PSOL tomar o poder, ele exibirá sua carteirinha do partido. A Secretaria de Cultura (Berinho) fez um investimento cultural, repassando recursos para Fundação Lourenço Braga (Berinho) editar esse livro. Mas valeu a pena. O turista tem, assim, uma tomografia da inteligentzia local.
Seu preço de 42 reais afetou minhas combalidas finanças. Posto que o comprei, não para usufruto pessoal, mas por razões profissionais, peço ressarcimento ao Cirilo e ao Batará, donos do Diário do Amazonas.
P.S. – O Dicionário omite na letra Z o verbete ZECA, de Zeca Nascimento, que nesse sábado completou 55 anos de idade, abençoado por todos os orixás, por Santa Edwiges e por Santa Chachá, padroeira dos glutões, dos amantes da vida e dos que cultivam a amizade. Os parabéns da coluna a ele que doou 15 mil metros quadrados a dezenas de família pobre da Comunidade Santa
Sarafa,
O que seria de nós se não tivessemos as informações do José Ribamar Bessa Freire
Prof. Bessa simplismente 10 seu comentario.
Gostei do “eterno” secretario de cultura.
Como dizem nossos jovens: ele se acha!!!