A irresponsabilidade do governo federal potencializou os danos da pandemia, e já disputamos com os EUA de Trump o campeonato de mortos e infectados. A economia se dissolve como sorvete no asfalto: depois do pífio crescimento de 1,1% do PIB em 2019, devemos chegar até o final do ano com uma queda em torno de 11%. Até uma mente brilhante como o presidente da FIESP sabe traduzir essa taxa como indicadora de longa onda de insolvências. Não há estimativas confiáveis sobre o número de falências de pequenas e médias empresas, mas sabe-se, hoje, dados do IBGE (Estadão, 1º.07.20) que o desemprego atinge 87,7 milhões de pessoas em idade economicamente ativa, uma população desde sempre precarizada e vulnerável, sem perspectivas de retorno ao mercado de trabalho, atingido pela crise estrutural da economia, pelo aumento da concentração de empresas e pelos avanços acelerados da digitalização, poupadora de mão de obra. Os analistas, e mesmo instituições como o Banco Mundial, estimam um alto crescimento de brasileiros em situação de extrema pobreza. Queda nas exportações, desindustrialização, déficit fiscal, queda da arrecadação, colapso das economias estaduais, renúncia aos investimentos promotores de desenvolvimento, renda e emprego, bem como privatização e desnacionalização de empresas estratégicas. Nada mais falta para a depressão e o caos social, o grande legado da “pauta Guedes”, ainda a menina dos olhos da grande imprensa e do “mercado”, que comemora o fim das garantias trabalhistas e o desmonte da previdência social.
O pano de fundo é a sistemática investida contra o ensino, a pesquisa, a ciência, a tecnologia, a cultura, o conhecimento. São as agressões ao patrimônio histórico, a depredação do meio ambiente. Um celerado é forçado a deixar o ministério da educação e foge, como mafioso, para Miami. Em seu lugar entra um “técnico”, flagrado como plagiário e mentiroso, dizendo-se possuidor de títulos acadêmicos que não conquistou. Supõe-se que seja um militar.
Moldura desse quadro de horrores, a cada dia ficam mais evidentes as ligações da família presidencial com as milícias fluminenses – daí as ruas haverem cunhado o termo familícia.
Mais da metade dos brasileiros (54%), informa pesquisa da agência Quest (Site Jota, 22 de junho corrente), consideram o governo do capitão ruim ou péssimo; 71% disseram estar preocupados com o futuro do país e 63% acham que o país está indo na direção errada.
Segundo o Datafolha (26/06/2020), 44% dos brasileiros rejeitam o governo. Pesquisa do Instituto Travessia, divulgada pelo Valor (26/06/2020), diz-nos que 71% dos brasileiros perderam renda, com maior incidência entre os mais pobres, os que recebem até dois salários mínimos (R$ 2.090,00) ao mês; 52% se dizem a favor das manifestações em defesa da democracia, 56% desaprovam a gestão da crise da pandemia e 41% consideram a administração federal ruim ou péssima.
No entanto, as sondagens de opinião dessas diversas agências e institutos, dizem, na média, que o capitão conserva o apoio de cerca de 32% do eleitorado, um índice de resiliência simplesmente espantoso, que, mantido, poderá assegurar-lhe presença no segundo turno das eleições de 2022. Dentre os que sempre o apoiaram, 92% contam-se entre os mais satisfeitos. Segundo a socióloga Esther Solano, coordenadora de pesquisa qualitativa realizada com moradores da cidade de São Paulo e de cidades da região metropolitana os eleitores de Bolsonaro – sorteados entre ex-votantes, desiludidos e frustrados – disseram que votariam novamente no capitão em 2022 “caso não encontrassem alternativa política ou eleitoral”.
Ainda de acordo com o Datafolha, o capitão tem o apoio de 42% do eleitorado do sul do país e de 61% do sudeste. O castelo forte da rejeição (52%) é o nordeste.
A enquete do Instituto Travessia também apura a intenção de voto para presidente da república nas próximas eleições. A liderança é do paraquedista, com 25% das menções, seguido por Lula, com 19%, e Moro (12%). Segundo o mesmo Valor (“Retrato de um Brasil em crise”, por Carlos Rydlewski) o capitão vence o ex-presidente no sul (32% a 12%) e no norte/centro-oeste (36% a 13%), ganha no sudeste (23% a 17%) e só perde no nordeste (17% a 30%), até aqui conservado como reduto petista (26,9% do eleitorado nacional).
Para o analista Carlos Melo, citado na matéria do Valor, as últimas pesquisas indicariam que Bolsonaro vem perdendo apoio entre os mais ricos (embora conserve o apoio entre os empresários, na margem de 51%), “mas ganhando adesão entre os mais pobres”, os brasileiros das chamadas classes C e D, a maioria da população.
Pode-se explicar a queda de popularidade do capitão entre “os mais ricos” como a primeira consequência da oposição que lhe fazem os grandes veículos impressos, jornais e revistas, que não chegam às grandes massas, as quais, por seu turno, escrevem os analistas, estariam sendo conquistadas pelo “coronavoucher”, o auxílio de R$ 600,00 destinado à população de baixa renda.
A oposição da chamada grande mídia – tanto a imprensa gráfica como a eletrônica, e neste caso registro o papel destacado da Rede Globo – reflete as contradições do chamado centro liberal, que, nada obstante seguir apoiando a “pauta Guedes”, ora se incomoda com os maus modos do capitão e sua récua, ora teme que sua incompetência ponha em risco o projeto liberal (a saber, os lucros do “mercado”), ora se molesta com a perspectiva de um regime ditatorial, regido seja pelo capitão seja pelo general seu vice. A postura da Folha de S. Paulo, a propósito, é muito clara, não só quando defende a ordem democrática, mas, talvez principalmente, quando, dirigindo-se aos que não viveram os tempos de terror, resolve trazer para seus leitores a história da ditadura militar, que os generais de hoje intentam reescrever, para negar seus crimes. Ditadura que, aliás, também contou com seu apoio, como contou com o apoio do grupo Globo e do Estadão. Recebamos a postura de hoje, desses veículos intrinsecamente comprometidos com o sistema, como uma autocrítica na ação.
Muito do avanço do bolsonarismo sobre as grandes massas deve ser atribuído mais a deficiências das esquerdas que a méritos do capitão. Além de ausentar-se dos trabalhos de organização de base e das periferias – deixadas livres para o pasto do pentecostalismo primitivo, dos milicianos e da bandidagem –, nosso campo perdeu para a direita a narrativa política, ao renunciar à batalha ideológica, em nome de um pragmatismo eleitoral de saldo político discutível.
Independentemente de sua justeza e urgência, muitas das teses que mobilizam hoje as lideranças de esquerda e dos partidos democráticos não comovem as grandes massas, condenadas à vida precária das periferias das grandes cidades, assediadas na luta pela sobrevivência diária, lutando por emprego e comida, sem casa para morar, sem transporte, sem escola para seus filhos, sem assistência médica. É preciso muito engenho e arte para convencer as grandes massas precarizadas de que o centro de sua luta seja, a defesa das instituições republicanas, ou a defesa da economia nacional (que não cria riqueza para o povo), ou do Estado, que só chega junto aos pobres (à procura de trabalho) por intermédio de policiais atrabiliários.
A elitização e a burocratização dos partidos acentua a distância entre suas lideranças e as massas. Esse divórcio se profunda a cada dia, pois também a cada dia mais se cava o fosso entre os valores dos quadros dirigentes e os valores dos militantes e das massas. Falamos para nós mesmos e nos encantamos com o eco.
O fascismo ameaça a classe média, que tem a justa compreensão histórica desta mazela, mas em nada assusta as grandes massas de nossas periferias, que vivem já, em qualquer dos nossos regimes, sob uma ordem legal racista, autoritária, segregacionista e policial.
A inadequação entre o discurso político das lideranças e as necessidades econômicas das massas denuncia alienação e voluntarismo. É preciso ter confiança nas massas, mas é preciso saber ouvi-las e se dispor a dialogar com elas, numa via de mão dupla. Propor-lhes a defesa de valores que não dizem respeito ao seu cotidiano é o mesmo que afastar-se delas.
Sem conviver com as massas é impossível compreende-las e sem compreende-las não podemos pretender lidera-las.
Decifrar essa esfinge é uma exigência da luta contra o bolsonarismo, uma doença que sobreviverá ao mandato do capitão, qualquer que seja seu termo.
Acordão
Surgiu a fumaça azul na chaminé da casa-grande. Militares, mercado, judiciário, congresso se acertaram e “tudo vai ficar como está para ver como é que fica”, pelo menos enquanto o capitão aceitar a camisa-de-força comportamental e a crise social não exigir novo arranjo. Por ora o tea party bolsonarista volta para os estaleiros, o capitão deixa de ameaçar os poderes e não se fala mais em impeachment. O congresso cuidará das reformas da “pauta Guedes” e o povo que se lixe.
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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia