O CORDELISTA QUE NÃO SE VENDEU

Por José Ribamar Bessa Freire

São dois poetas populares, dois cordelistas: Gonçalo e João. Os dois receberam uma encomenda do jornal O Globo,às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, para fazer a biografia, em versos, dos candidatos a presidente. Um ficou responsável por Serra. O outro, pela Dilma. Tinha tudo para ser um cordel de peleja, de desafio. Afinal, os dois amigos, membros da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), têm talento de sobra para isso. Leiam o que cada um já fez.

Gonçalo Ferreira da Silva já publicou duzentos títulos em várias línguas e vendeu mais de um milhão de exemplares em três continentes. Foi traduzido ao francês e ao alemão. No cordel Enfants des Rues et Le massacre de La Candelária, denuncia o crime organizado, a corrupção da policia e até as riquezas do cardeal “Eugênio Sales par exemple / qui possède tant d’argent”. Diante dos cadáveres de crianças na porta da igreja da Candelária, ele clama contra a neutralidade de Deus e omissão do governo: “Dieu est resté neutre / et le gouvernement marginal”.

João Batista Melo também é internacional. Já foi elogiado pela ONU por seu cordel “A falta d’água no mundo”, em cartinha escrita por Giancarlo Summa, diretor do United Nations Information Centre. Além disso, livros de sua autoria foram parar na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, em Washington, comprados no Largo da Carioca por uma diplomata, conselheira do Consulado Americano. Um deles – “Dalcídio Jurandir romancista da Amazônia” – faz sucesso nas universidades, e outro – “A moça barrada no céu porque tinha tatuagem” – vende como pão quente nas feiras.

Por causa desses currículos, os dois foram chamados para escrever sobre os candidatos. Gonçalo não teve problemas. Destacou a infância pobre de José Serra no bairro da Mooca, cujo pai era vendedor de frutas no Mercado Municipal. Compôs uma biografia sóbria e respeitosa, sem puxa-saquismo. Foi objetivo. Suas estrofes trazem informações corretas e fidedignas, comprovando que o cordel é mesmo “o jornal do sertão”. E a Dilma, como ficou sua biografia? É aqui que o fiofó da cotia assovia ou como diria o ínclito jurista Orozimbo Nonato, de forma mais elegante, “hic culum cotiae sibilare”.

Jornal do Sertão

Se o fiofó da cotia assoviou aqui foi por causa das restrições impostas ao poeta. No Jornal do Sertão existe liberdade de expressão, o que é uma rima e é uma solução. No entanto, isso não funciona com O Globo. A encomenda veio com um recado do jornalista Marcelo Remígio, orientando como a vida da Dilma devia ser abordada. Embora não oferecesse qualquer pagamento ao poeta, exigia seu enquadramento na linha editorial do jornal:

– “O Globo quer um cordel sobre Dilma Rousseff. Mas tem de colocar corrupção e Erenice Guerra no meio. Só serve se falar no tráfico de influência”.

João se sentia honrado em publicar sua poesia num jornal de circulação nacional, o que o tornaria ainda mais conhecido. Mas estava diante de um dilema ético. Ele admira Lula, votou em Dilma, achava que não era justo responsabilizá-la pelas trapalhadas de Erenice. Como sacanear alguém que admira, traindo princípios nos quais acredita? A encomenda era pior do que o soneto. O que você faria, leitor (a)? Recusaria o convite mantendo a integridade ou tiraria vantagem entrando no esquemão? Veja só qual foi a saída encontrada pelo nosso folheteiro.

João Batista é um poeta talentoso, irreverente, dotado daquela vivacidade e inteligência que o mundo da oralidade cultiva e estimula. Tem doutorado na arte da sobrevivência, o que lhe permitiu desenvolver sagacidade e rapidez de raciocínio, virtudes que a gente admira no Lula. Com essas ferramentas, João enfrentou situações complicadas desde sua infância, lá na cidade de Itabaianinha, no sertão sergipano, onde nasceu. Já fez um pouco de tudo na vida nos 72 anos de sua existência.

Foi tecelão, na cidade de Estância (SE) para onde se mudou e onde fez seus estudos. Com 30 e poucos anos, migrou para o Rio de Janeiro. Trabalhou como comerciário e como metalúrgico e, hoje, aposentado, vive em Niterói, fazendo aquilo que faz desde sua infância: literatura de cordel. Realiza palestras nas escolas para mostrar que o cordel pode reler a realidade e educar. Com ele, tive o prazer de participar em alguns eventos na universidade, onde encantou a todos com sua rima e sua métrica.

Jesus e capuz

Somos amigos desde o século passado. Quem nos apresentou foi o pedreiro Evando dos Santos, que criou uma biblioteca popular no largo do Bicão, na Penha. Na época, dei consultoria ao João para o cordel “Irajá, a freguesia do Mel”, passando-lhe informações de alguns documentos sobre a história do Rio de Janeiro. Ele agradece na contracapa.

Depois disso, semanalmente, trocamos um dedo de prosa na banquinha que João mantém na feira do Campo de São Bento, em Icaraí, Niterói. Lá, espalhados sobre uma mesinha pequena de ripas, estão seus folhetos datilografados à máquina e com modelo da capa desenhado por ele mesmo. Com frequência passo lá e, às vezes, até leio, recitando em voz alta, como fiz com esse trecho sobre Dalcidio Jurandir:

“Era um diamante puro / que já nasceu lapidado / nunca cursou faculdade / nem fez curso destacado / mas seu dom pela caneta / o fez escritor porreta / pronto pra ser premiado”.

O que João Batista ganhou com a literatura de cordel? Numa entrevista concedida à jornalista Paula dos Santos, ele respondeu com muito orgulho:

– “A minha fortuna é a seguinte: eu tenho uma casa em Itaipu, uma esposa, dois filhos formados em faculdade e o meu patrimônio de poesia”.

Desse patrimônio, faz parte sua integridade. João nunca se vendeu, sua poesia e sua prosa estão a serviço dos deserdados e dos excluídos. Como sair dessa enrascada? Como fazer a biografia da Dilma em versos, vinculando-a levianamente aos graves erros de sua amiga Erenice?

No dia 31 de outubro, O Globo publicou a biografia da Dilma escrita pelo nosso João. Houve censura, conforme reclamou o autor, porque suprimiram o adjetivo “competente” que rimava com presidente e outras coisinhas mais. Mas deu o recado sobre a candidata. Revoltado com a história de que Dilma era assaltante de banco, deu sua versão: “Enfrentou com altivez / os porões da ditadura / encarou constrangimentos / o choque elétrico e a tortura / pelo povo do Brasil / pegava até no fuzil / e sem perder a ternura”.

E onde entrava Erenice Guerra e a corrupção? João não contou com conversa. A fórmula que ele encontrou pra dizer o que pensava foi essa: “Mas vozes dominadoras / escondidas em capuz / falam em corrupção / tráfico de influência e pus / só pensam coisas miúdas / porque almoçou com Judas, querem condenar Jesus”. Dessa forma, como o flautista de Georges Brassens,“o cordelista, humilde jogral / disse NÃO ao esquema global. Agora nenhum cidadão diz, que o cordelista traiu sua raiz. E Deus reconhece como filho seu, esse bardo que não se rendeu”.

Dilma devia convidar o seu biógrafo João Batista Melo para a cerimônia de posse, no dia 1º de janeiro, em Brasília, bem como sua digníssima esposa dona Maria José. Tenho certeza de que alguns leitores se sentiriam, como eu, bem representados por João e Maria. O convite pode ser estendido também a Gonçalo Ferreira da Silva, presidente da ABLC. Ambos fazem lembrar o flautista de Brassens, cuja letra vai abaixo, com uma versão em português.

O FLAUTISTA[i]

José Ribamar Bessa Freire

I

O tocador de flauta, modesto jogral,

levou sua música ao castelo feudal.

Maravilhado com tão bela canção,

o rei lhe ofereceu emblema e brasão.

Majestade – disse o flautista pobre –

não quero ser fidalgo nem nobre.

Com um brasão em minha melodia,

meu do-re-mi ficaria com afonia.

Meus conterrâneos diriam de repente:

– nosso flautista traiu sua gente.

II

Não iria mais querer acender vela

pros santinhos da nossa capela.

Eu só rezaria – que vexame! –

lá na Catedral de Notre Dame.

No campanário da nossa igrejinha,

o sino viraria campainha.

Com um bispo na minha clave de sol,

eu desafinaria sustenido e bemol.

E todo mundo falaria: – você viu?

Nosso tocador de flauta nos traiu.

III

Trocaria minha cabana de palha

por castelo com fosso e muralha

E o quartinho onde durmo feliz

Pelos aposentos da imperatriz.

No lugar do colchão de capim,

Leito de seda, renda e cetim.

Com um castelo na pauta musical,

minha toada soaria artificial.

Os camponeses diriam de novo:

– o flautista traiu o seu povo.

IV

Teria vergonha de meus ancestrais,

de minhas origens e de meus pais.

Falsearia uma linhagem aristocrática

com árvore genealógica emblemática.

Repudiaria o sangue de minha veia.

Renegaria o povo de minha aldeia.

Com um sangue azul tão dissonante

minha cantiga se tornaria pedante.

E os aldeões diriam com lucidez:

– o flautista nos traiu outra vez

V

Um duque, um conde, um marquês,

não podem ter um filho camponês.

Seria impossível me casar por amor

com minha amada, botão em flor.

Meu casamento seria uma barganha

com a filha do rei da Espanha.

Com uma princesa na minha modinha,

meus versos só louvariam a rainha.

Plebeus e servos diriam: – no fundo,

o flautista traiu o nosso mundo.

VI

Então, o flautista, humilde jogral,

Disse ‘NÃO’ ao castelo feudal.

Sem escudos, honrarias e glória,

retornou ao lugar da memória:

choupana, aldeia, campanário,

família, afetos, relicário.

Agora nenhum aldeão diz

que o flautista traiu sua raiz

E Deus reconhece como filho seu

aquele bardo que não se rendeu.

[1] Versão livre do ‘Le petit joueur de flûteau’.

Le petit joueur de flûteau

Georges Brassens

I

Le petit joueur de flûteau

Menait la musique au château

Pour la grâce de ses chansons

Le roi lui offrit un blason

Je ne veux pas être noble

Répondit le croque-note

Avec un blason à la clé

Mon la se mettrait à gonfler

On dirait par tout le pays

Le joueur de flûte a trahi

II

Et mon pauvre petit clocher

Me semblerait trop bas perché

Je ne plierais plus les genoux

Devant le bon Dieu de chez nous

Il faudrait à ma grande âme

Tous les saints de Notre-Dame

Avec un évêque à la clé

Mon la se mettrait à gonfler

On dirait par tout le pays

Le joueur de flûte a trahi

III

Et la chambre où j’ai vu le jour

Me serait un triste séjour

Je quitterai mon lit mesquin

Pour une couche à baldaquin

Je changerais ma chaumière

Pour une gentilhommière

Avec un manoir à la clé

Mon la se mettrait à gonfler

On dirait par tout le pays

Le joueur de flûte a trahi

IV

Je serai honteux de mon sang

Des aïeux de qui je descends

On me verrait bouder dessus

La branche dont je suis issu

Je voudrais un magnifique

Arbre généalogique

Avec du sang bleu a la clé

Mon la se mettrait à gonfler

On dirait par tout le pays

Le joueur de flûte a trahi

V

Je ne voudrais plus épouser

Ma promise, ma fiancée

Je ne donnerais pas mon nom

A une quelconque Ninon

Il me faudrait pour compagne

La fille d’un grand d’Espagne

Avec un’ princesse à la clé

Mon la se mettrait à gonfler

On dirait par tout le pays

Le joueur de flûte a trahi

VI

Le petit joueur de flûteau

Fit la révérence au château

Sans armoiries, sans parchemin

Sans gloire il se mit en chemin

Vers son clocher, sa chaumine

Ses parents et sa promise

Nul ne dise dans le pays

Le joueur de flûte a trahi

Et Dieu reconnaisse pour sien

Le brave petit musicien.