O Brasil inteirinho cabe no Beco da Bosta, no bairro de Aparecida, em Manaus. Quer ver? Lá, no quintal compartilhado por várias casas, havia um banheiro com sentina, de uso comum, devassável através das frestas na parede de ripas. Cada vez que a Das Dores ali entrava, o sapateiro Ceariba ia brechá-la, fazendo justiça com as próprias mãos. Até que um dia cruzou no quintal com o filho dele, Etelvino – o Téo Xarope – e deu-lhe uma surra com cinturão de couro, deixando-o exangue com marcas da fivela por todo o corpo. E ainda fez um discurso moralista para todo o bairro ouvir:
– Moleque indecente! Depravado! Isso é para aprender a respeitar moça de família.
E o menino nem estava brechando. Fez apenas o que fazem no futebol de rua: pulou o muro para buscar a bola que quicou ao lado do banheiro no momento em que o pai espiava Das Dores. Diante do flagrante, o Ceariba inverteu o jogo: fez um escândalo e usou o discurso da virtude para neutralizar sua fama de tarado e poder assim brechar em paz, não hesitando em espancar brutalmente o próprio filho. Logo depois da surra, tudo voltou a ser como o diabo gosta no Beco da Bosta. Entre uma e outra meia-sola, o sapateiro continuou abicorando a ida da moça à sentina, ali de sua oficina aberta para o quintal. Mesmo assim, parte de sua clientela, levada pelas aparências, acreditou que a criança estava brechando, afinal filho de peixe, peixinho é – diziam.
– O Ceariba erra quando brecha, mas acerta ao castigar o filho brechador, a quem tem de educar – concluíam, aprovando o espancamento da criança, achando que assim se moralizaria o quintal.
Derrota do pensamento
Eis o que eu queria dizer: o presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha é o Ceariba. Réu em diversos processos já acatados pelo STF, ele e seus cupinchas são todos Ceariba – Jucá, Temer, Pauderney, Maluf e 35 deputados da Comissão de Impeachment indiciados por corrupção. Como o Ceariba, usam o poder para esconder suas falcatruas. Justificam com discurso de honradez e integridade o golpe que não ousa revelar o nome. Golpistas nunca aceitam serem assim chamados, disfarçam sempre com outras denominações. O golpe militar de 1964 foi apelidado por seus autores de “Revolução”.
Será que não dá para desconfiar quando tantos corruptos juram que lutam contra a corrupção? O empresário Ricardo Pernambuco Jr. da Carioca Engenharia, em delação premiada à Procuradoria-Geral da República na Operação Lava-Jato, entregou uma tabela que aponta 22 depósitos somando US$ 4.680.297,05 em propinas pagas ao presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), entre 10 de agosto de 2011 e 19 de setembro de 2014.
É esse cidadão que comanda o golpe contra a presidente eleita por 54 milhões de brasileiros, num processo empobrecido no qual não se discute o país. Os parlamentares, em sessões transmitidas pela televisão, dão um espetáculo deprimente com insultos, ofensas pessoais, gritos e até troca de sopapos e empurrões, com pouca argumentação. Parece até – diz o Macaco Simão – tiroteio entre facções pelo controle da boca de fumo.
Qualquer que seja o resultado da tentativa de golpe neste domingo, uma coisa é certa: o país sai politicamente enfraquecido, deprimido, desinformado, ferido, envenenado, cheio de ódio, com um congresso nacional que enxovalha e envergonha o país e a cumplicidade de uma mídia quase sempre conivente com a truculência triunfante e a derrota do pensamento.
Há raras exceções. No domingo passado, o caderno Ilustríssima da Folha de SP formulou para 31 intelectuais representativos da intelligentsia brasileira, a pergunta: E você, é a favor ou contra o impeachment? A maioria se manifestou contrária, incluindo muitos que não votaram em Dilma. As cabeças pensantes desse país nos oferecem argumentos que convidam à reflexão.
Discurso do Ceariba
O escritor e artista plástico Nuno Ramos justificou: “Eu não votei nela, votei nulo, mas como não vejo vínculo pessoal da presidente com falcatruas, acho que quem apertou o botãozinho com a foto dela, arrependido ou não, merece respeito. Sou contra a saída da presidente”.
O professor da Unicamp Luiz Gonzaga Belluzzo esclareceu: “Sou contra. Quem viveu 21 anos sob o guante da ditadura desenvolveu anticorpos que identificam rapidamente os vírus do arbítrio. Dilma recebeu o mandato pelo sufrágio universal. Presidente não pode ser tratado como técnico de futebol: “a gente trocamos” se a galera não está gostando”.
Ângela Alonso, professora de Sociologia da USP considera que “os argumentos contrários ao governo – estelionato eleitoral, má gestão, impopularidade – são insuficientes para justificar a interrupção de um mandato. Se combate à corrupção fosse a motivação de fato, seu alvo primeiro deveria ser o presidente da Câmara contra quem pesam acusações seríssimas e fartamente demonstradas”.
Vários intelectuais destacaram que se o golpe vencer, a Operação Lava-Jato já era. A Polícia Federal, com Michel Temer, não terá a autonomia que goza atualmente. Temer pode até sacrificar um ou dois figurões, mas depois abafa tudo para proteger seus cúmplices com quem contraiu dívida por ter sido alçado sem nenhum voto à condição de presidente e volta a fazer exatamente o que sempre fez com o silêncio e a cumplicidade da grande mídia.
Essa é a opinião do professor de ciência política da Universidade Federal Fluminense, Jessé Souza, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA): “Está acontecendo um golpe. Sem respeito à soberania popular, haverá um quadro de caos e violência (…) O golpe tem um braço midiático de combate seletivo à corrupção, que é a senha da manipulação de um público desinformado e atende a necessidades econômicas do andar de cima. Não se trata de combate à corrupção, mas de ganho de poder”.
Lendo os depoimentos tão convincentes de intelectuais que pensam o Brasil, fiquei matutando e me perguntando: por que muitas vezes a razão é derrotada pela truculência? Como é possível que a podridão dos Cunha e Ceariba tenham êxito em anestesiar consciências, em levar pessoas de bem a agirem contra sua própria condição oprimida? Por que a inteligência parece ser tão impotente para barrar o golpe? Será?
Se golpe houver, o Brasil entrará definitivamente no Beco da Bosta. O país vai feder ainda mais.