A cozinha de um país é sua paisagem colocada na panela. (Provérbio Catalão)
O Brasil inteiro cabe dentro de uma panela. Não me refiro à usada pelos “paneleiros” para derrubar uma presidente eleita. Tal panela é vazia e oca como seus usuários, ao contrário da outra, farta, cheia de ingredientes, condimentos, alimentos que geram turbulências quando não são transportados por caminhões pelas estradas para chegarem à cozinha do consumidor. Dentro dela cabem receitas, temperos, cheiros, sabores, festa, música, humor, literatura, economia doméstica, saúde, higiene e o diabo a quatro.
Essa receita do Brasil está no livro editado pela EDUFF lançado recentemente na Livraria Icaraí, em Niterói – Discurso sobre alimentação nas enciclopédias do Brasil: Império e Primeira República – de Phellipe Marcel, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Ele realizou a façanha de encher a panela com sua pesquisa de doutorado para analisar o Brasil dentro deste caldeirão: o Brasil caipira, rural, urbano e suas identidades. O Brasil, não a caricatura que a TV Globo quer no futuro, mas o que a gente tem agora.
O tema surgiu graças ao carinho das duas avós do autor que embaralharam narrativas, identidades e receitas e alimentaram o Phellipinho com pão de ló. A vovó Yolanda, carioca, filha de paraibanos e italianos, preparava ensopadinhos e doce de laranja-da-terra. A vovó Cícera, alagoana, descendente de índios com franceses, preparava um cuscuz imbatível, pudim de pão e galinha cabidela ou ao molho pardo, que dá água na boca só em falar. Pronto. Foi daí que nasceu o tema, temperado pelas avós de tantos brasis: latino, índio, negro.
Receita do Brasil
Mas um tema sozinho não faz verão, mesmo que o pesquisador se entregue apaixonadamente a ele como foi o caso. Faltavam os documentos e as ferramentas de análise. O autor, com gosto e vocação para a pesquisa, vasculhou os acervos da Biblioteca Nacional e da Academia Brasileira de Letras em busca de alimentos ali registrados, assim como aqueles que foram silenciados e apagados naquilo que historicamente se considerava alimentação do brasileiro.
Encontrou rico material, de cuja existência nem suspeitava. Consultou textos e uma rica bibliografia incluindo desde a Carta de Pero Vaz de Caminha até as crônicas e relatos de viajantes. Identificou os discursos sobre comida que circulam no Brasil nos livros de culinária, em almanaques, revistas, com o corpus de análise concentrado nas enciclopédias. Analisou prefácios, introduções, apresentações e notas dos editores na abertura das coletâneas,
E as ferramentas de análise? Ele foi buscá-las no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal Fluminense (UFF), que lhe forneceu os instrumentos conceituais e teóricos no campo da Análise do Discurso (AD), complementando a busca na Université Paris 13, sob a orientação segura da doutora Vanise Gomes de Medeiros.
O livro se dirige não apenas aos conhecedores desta área, mas também a nós – eu e muitos leitores – que não somos especialistas em AD. Para isso, define os conceitos usados na tentativa de apreender as filiações de sentido nas enciclopédias publicadas no período de 1863 a 1925 sobre a comida brasileira para revelar em que medida tal operação ajuda a entender o Brasil e os brasileiros.
O corte cronológico toma como ponto de partida uma das primeiras enciclopédias publicadas no Brasil – a Encyclopedia do Riso e da Galhofa em Prosa e Verso (1863) – e outras identificadas como fundadoras e que permitem reconstruir a história dos sabores: a Encyclopedia popular (1879) – a primeira de divulgação científica em nosso país; a Encyclopedia e Diccionario Internacional (1920), pioneira na organização em verbetes; o Thesouro da Juventude (1925) destinado à educação infantil, uma espécie de google da minha geração e, finalmente, O Cozinheiro Nacional (1870), o primeiro livro de culinária com receitas.
Dupla feijão-farinha
Com esse material, o autor mostra discursivamente como se dá nas enciclopédias a formação daquilo que vai sendo chamado de comida brasileira, bem como a constituição da identidade nacional que se constrói, entre outros materiais, com a culinária, talvez muito mais do que com o futebol. Mais do que no gramado e nos estádios, o Brasil está mesmo é na panela.
A tese torna evidente o apagamento do discurso sobre a formação da alimentação no Brasil no que diz respeito às influências e contribuições do negro e do índio, marginalizados em detrimento da herança lusa. O consumo de feijão, por exemplo, é registrado pelo viajante francês Saint-Hilaire, entre 1816 e 1822, em diferentes pratos com feijão-preto: “à moda brasileira”, “a modo dos colonos”, “em tutu”, “tutu à baiana” e até a “feijoada”. Mas as receitas não constam no Cozinheiro Nacional (1870).
– A dupla feijão-e-farinha de mandioca já era consumida antes da chegada dos portugueses, mas só vai aparecer como base da alimentação do brasileiro a partir de 1920, com a eclosão do movimento modernista. Apesar de muitos ingredientes, pratos e comidas indígenas terem sido apagados ou omitidos no discurso enciclopédico, o feijão e a farinha resistiram– escreve Phellipe Marcel.
Desta forma, o livro passa por outros sentidos sobre comida e sobre sujeito, abordando o discurso geopolítico que “nacionaliza” sabores e comidas, além do discurso médico, para o qual algumas comidas e ingredientes são básicos não só para o sujeito nacional, mas para toda a espécie humana. Discute o perigo da universalização, generalização e redução do sujeito a uma espécie biológica.
Ao discorrer sobre comida e alimentação, Phellipe Marcel reflete muito sobre a história desse Brasil imenso que, se cabe na panela, como a paisagem na cozinha catalã, não deixa de ter, dentro dela, conflitos, encontros, sabores e dissabores. Mas que dá um caldo, dá.
P.S. 1 Texto reelaborado a partir do prefácio escrito para o livro de Phellipe Marcel da Silva Esteves. O que se pode e se deve comer: uma leitura discursiva sobre sujeito e alimentação nas enciclopédias brasileiras (1863-1973) EDUFF. Niteroi. 2017, lançado em 2018. A tese defendida no final de 2014, contou com a seguinte banca: Vanise Gomes de Medeiros (orientadora), Bethânia Sampaio Correa Mariani, Helena Franco Martins, Maria Cristina Leandro Ferreira e José R. Bessa Freire.
P.S. 2 – A foto, evidentemente, foi postada no Face como sói acontecer. Aliás, diplomas só deviam ser reconhecidos depois da postagem das fotos da defesa nas redes sociais.