Segundo The Economist, a vetusta e conservadora revista britânica, algo como mensageiro oficial do capitalismo, a China decidiu responder à guerra comercial que lhe movem os EUA aumentando os investimentos em infraestrutura, educação, ciência e tecnologia, fórmula simples e clássica de ativar a economia. Ao lado das grandes obras, aplica recursos crescentes em educação e em pesquisa básica e na formação de mão-de-obra especializada, qualificada e qualificadíssima, e na pesquisa de ponta, em áreas como cibernética, exploração espacial (já chegou ao lado escuro da Lua), e inteligência artificial. Resultado óbvio: seu PIB cresceu 6,4% no primeiro trimestre deste ano. A China é hoje a segunda maior economia do mundo, caminhando para, em menos de uma década, superar os EUA, tanto como economia, quanto em desenvolvimento científico e tecnológico, com todas as implicações daí decorrentes para a geopolítica e as estratégias de segurança e hegemonia que transitam da atual unipolaridade (herança da Guerra Fria) para uma multipolaridade cujos contornos ainda não podem ser definidos.
Esta China, potência econômica, política e militar global que não cessa de crescer, era, em 1949, um país paupérrimo, arruinado pelo colonialismo europeu, invadido e saqueado ao longo de séculos, e, naquela altura, às voltas com uma revolução social. Era um país de camponeses miseráveis, quando nós brasileiros já aspirávamos à industrialização e à urbanização.
Que fenômeno explica a diferença de desenvolvimento desses dois países?
Enquanto a China disputa com os EUA a liderança econômica e tecnológica, continuamos na periferia do capitalismo, agora dominados por uma ultradireita antidesenvolvimentista, anti-progresso, atrasada, dissolvente das esperanças. Seu projeto não é mais impedir a chegada do futuro, nem apenas congelar o presente: é trazer de volta o passado. O Brasil de hoje suspende os investimentos públicos de um modo geral e em infraestrutura de forma específica, reduz os gastos em educação e ciência e tecnologia, e renuncia a projetos estratégicos, como a cibernética e o programa espacial, fundamentais para o desenvolvimento e a segurança de qualquer país de nosso porte, ou que, como já almejamos, pretenda desempenhar um papel de sujeito no concerto internacional. Nossa balança comercial retorna aos contornos do início do século passado, dependente da exportação de matérias-primas sem valor agregado, antes pau-brasil, ouro, prata e pedras preciosas das minas gerais, depois açúcar e depois café; agora soja e carne e minério de ferro.
Nossa participação na economia global atinge o pior nível em 38 anos; a fatia do país em bens e serviços é de 2,5%, contra um pouco mais de 3% em 2011.
O Brasil do capitão e dos generais associados corta em 42% o orçamento do ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações, reduzindo as bolsas de mestrado e doutorado (aqui e no exterior) e de iniciação cientifica, comprometendo ainda a manutenção e modernização de laboratórios, registros de patentes e inovação nas universidades e, por óbvio, a qualidade do ensino e da pesquisa.
Compromete o papel das agências de financiamento, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-CAPES, a Financiadora de Estudos e Projetos-FINEP e, na esteira, as agências estaduais de fomento ao ensino e à pesquisa.
De 2015 para cá o setor de conhecimento perdeu cerca de R$ 35 bilhões de reais.
No plano da educação, o projeto de nossas classes dominantes, das quais o bolsonarismo é expressão obscena, é destruir com a escola pública e o ensino gratuito, quando a educação, isto é, o acesso ao conhecimento, é o único instrumento que pode dar ao pobre chances de ascensão social e ao país condições de competitividade num mundo que já vive a chamada 4ª revolução industrial (perdemos o tempo de todas as outras) assinalada pela convergência de tecnologias digitais, físicas e biológicas.
Como lembrava Darcy Ribeiro, a tragédia da educação brasileira não se deve a erros de planejamento. Mas, sim, a seus acertos. Esse fracasso é o prêmio de um projeto bem sucedido de nossas perversas classes dominantes, para quem o desenvolvimento nacional ou a melhoria da qualidade de vida de nosso povo jamais foram uma questão central.
O projeto que a casa grande devota ao país, desde a colônia, contrasta com as políticas das sociedades capitalistas desenvolvidas, que tanto investem no ensino e na escola pública. O ministro da educação do momento anuncia seu desprezo pelas universidades públicas e pelo ensino daquelas cadeiras, como filosofia e sociologia, que fazem o aluno pensar e transformar-se em cidadão. Há, herdeiro dos projetos fascistas, o ódio à cultura e ao conhecimento, o ódio à inovação e à dúvida. Não por acaso, ao corte das receitas orçamentárias em educação e ciência e tecnologia, bem como em cultura, se seguem os ataques à autonomia universitária e à liberdade de cátedra, uma conquista de séculos. Não é obra do acaso, nem é trivial, o governador de São Paulo pretender reduzir os recursos destinados às universidades estaduais, como não é sem razão que sua maioria na Assembleia Legislativa constitua CPI com o objetivo de, diz seu presidente, “acabar com o ‘aparelhamento’ da esquerda na USP”.
Na contramão do mundo que avançou, o Brasil reduz todos os seus problemas à crise fiscal, cuja solução, nos termos colocados, só interessa aos banqueiros que financiaram a aventura bolsonarista, e releva a plano secundário o caminho de seu enfrentamento, que é o desenvolvimento econômico, a única forma até aqui conhecida de geração de riqueza.
Resultado óbvio: o ‘mercado’– esta entidade mítica – já capta sinais de que o PIB deste ano indicará um ‘crescimento’ zero marchando para um ‘crescimento’ negativo ainda em 2019 e seguramente zero, mantidos os dados de hoje, em 2020.
Caminhávamos, paramos e agora andamos para trás.
Enquanto isso, os bancos tiveram, em 2018, ganhos que somaram R$ 100 bilhões de reais, o maior lucro desde o plano real, 17,40% superiores ao resultado obtido em 2017 sobre 2016, contrastando com o PIB, que no mesmo período cresceu apenas 1,0%.
A recuperação da renda brasileira por habitante vive seu pior momento da história, 9% abaixo dos indicadores de 2014. O Brasil perdeu em marco 43,2 mil empregos formais. Mas o Bradesco teve um lucro de R$ 5,8 bi no primeiro trimestre deste ano, uma alta de 30%.
O ano, mal começado, já está perdido e perdido deverá ser 2020 com o espectro da estagnação de hoje, ou mesmo da depressão de amanhã, que o capitão acelerará com a inefável colaboração de sua equipe econômica e a solidariedade suicida da Avenida Paulista.
Está claro que a crise econômica, aguçada pelo neoliberalismo em voga, é o melhor fermento da crise política a caminho da crise institucional, na qual já ingressamos com a ativa contribuição do governo e seus agentes provocadores, de dentro e de fora da familiar, de dentro e de fora do Planalto, de dentro e de fora do Alvorada, de dentro e de fora da caserna.
O aumento do desemprego – inevitável diante da disfunção econômica associada às novas relações de produção (que já chegou ao campo) fundadas na automação – é apenas um adicional na tessitura da crise social, com a qual não podem, nem hoje nem amanhã, se deixar surpreender as forças progressistas. Antes, cabe-lhes, antevendo o que está à vista no horizonte de curto prazo, saber o que fazer e começar a fazer.
Está à vista que o bolsonarismo – qualquer que seja seu projeto e suas associações civis e militares, econômicas e corporativas, nacionais e internacionais – investe na expectativa de impasse, que estimula, ora com essa política neoliberal sabidamente geradora de conflitos, ora com o incentivo à violência, ora com o choque institucional, ora com o desapreço ao Congresso, ora com as investidas contra o Poder Judiciário, ora incitando a cizânia mesmo no seio das hostes fundamentais para a sustentação de sua parcela de poder.
É óbvio que não se trata, apenas, de incompetência, nem só de loucura, pois há muito método em tudo isso.
A História, uma vez mais, desafia as esquerdas brasileiras e o que se possa chamar de liberais progressistas dizendo-lhes que, se continuarem se dando ao luxo de privilegiar suas vaidades e as brigas intestinas, as pequenas pelejas e os projetos (eleitorais) particulares, ou disputando títulos imaginários de “pureza” inócua, confundindo tática e estratégia, terão que reconhecer que deram sua parcela de contribuição para o prolongamento e aprofundamento do maior regressismo político, econômico e social já visto por esta acidentada república.
A História nos julgará a todos – e as massas já estão julgando.
Roberto Amaral
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia