Se eu ficar o tempo todo contando histórias, eu não vou desaparecer.
Patrícia Portela – Scheherazade Flatland
Cascudinho é o nome do bodó, um peixe amazônico da família Acari, que já andou contando uma ou outra história, em 2012, aqui nesta coluna do Diário do Amazonas. Agora, essas e outras viraram livro – “Cascudinho, o peixe contador de histórias” – que será lançado no final de outubro pela Editora do Brasil no 21º Salão da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) na Biblioteca Parque Estadual do Rio de Janeiro. As ilustrações coloridas de Luciana Grether, professora de Artes e Design da PUC-Rio, valorizaram tanto o texto que até o próprio autor, ao ver as imagens, sentiu uma vontade danada de ler o que ele mesmo escreveu.
O nosso Bodó, filho da dona Acari-Nhosa, mora no lago Espelho da Lua, que tem esse nome porque a lua cheia, em noites de plenilúnio, mergulha naquelas águas prateadas, que hospedam assim a colossal tapioca de beiju. Mas o lago fica longe da Escola do Igapó, onde ele estuda. Diariamente, quando a professora Piraíba, a tia Laulau, faz a chamada, Cascudinho está ausente. Chega sempre atrasado, já na hora da merenda. Para se justificar, inventa histórias mirabolantes, como o engarrafamento no rio Amazonas invadido por milhares de cardumes, numa piracema que dá nó no trânsito.
Cada dia é uma história diferente, mas não vamos dar spoiler aqui. Podemos adiantar que a hora em que ele contava suas histórias era como a novela das nove, todos os outros peixes vinham ouvi-lo. Sua imaginação não tinha limites, dominava a arte de narrar com maestria, incorporava os personagens, explorava as qualidades retóricas, com pausas estudadas, altura de voz modulada, abrindo e fechando teatralmente a boca em forma de ventosa e mexendo a nadadeira dorsal para dar realismo às cenas.
O bodozal
O sabor das histórias narradas fez com que outros peixes tivessem uma visão diferente daquela dos humanos registrada por Sérgio Freire, o nosso “Aurélio caboco”, em seu magistral dicionário Amazonês: Expressões e termos usados no Amazonas. Lá Bodozal designa “bairro pobre, periferia, sem água encanada e sem esgoto”. É que o bodó tem fama de feio, de sujo, porque quando as águas do rio baixam, ele cava buracos no barranco e fica chafurdando na lama. No entanto, Cascudinho encantava os demais peixes, como se estivessem todos enfeitiçados pelo maior hipnotizador do Amazonas, o famoso Pão Molhado, conhecido como Wet Bread.
Dizem que quem é feio fica bonito quando conta histórias. Por isso, diziam que além de bonito, Cascudinho ficava cheiroso e charmoso. Diziam que na hora de narrar, o Bodó soltava borbulhas de amor e sua cintura ficava bordada por algas e corais. Por causa dele, um músico cantou que queria ser um peixe. Mas essa boniteza não impediu que ele adquirisse a fama de dissimulado e mentiroso. Alguns peixes invejosos, como a Cunhantã Matrinxã, cheia de espinhas, com três fileiras de dentes, o acusava de ser trapaceiro.
– Quero ver minha mãe Acari-Nhosa mortinha num aquário ou numa rede de pescar se isso não for verdade – dizia Cascudinho, que jurou: “Cruz de Aço, cruz de ferro, se estou mentindo vou pro inferno”.
Algumas de suas histórias, bem-humoradas, provocavam risos, numa delas Cascudinho recitou um versinho do saudoso Paulo Bonequeiro para uma pirajica, que rebolava sua nadadeira caudal em forma de forquilha e pela qual se enamorou:
– “Tudo bem, amada? Eu rio, rio… Você: nada?”.
Cascudinho achava que “amor de pirajica, onde bate, fica”. Ele, seus amores e seus amigos. Numa das histórias, encontra no rio Solimões o Axolote que, perseguido pela ditadura das piranhas no México, fugira do lago Xochimilco para vir se asilar no Amazonas. Fez amizade com este peixe asteca, que ao contrário de qualquer ser vivo, já nasce velho e morre quando fica bebezinho.
O filho da truta
No penúltimo dia de aula, Cascudinho jurou que retornou ao passado, ao subir o rio Negro, onde testemunhou a criação do mundo de dentro da cobra-canoa. Descobriu, então, que todos os seres vivos somos filhos da Avó do Mundo fecundada pela Música. Foi aí que a tia Piraíba levou o bodó ao médico, o doutor Sapo Tarobequê que concluiu ser o paciente um “sonhador compulsivo” e diagnosticou um “transtorno de devaneio excessivo e mal adaptativo”. Para curá-lo, Cascudinho devia agir como seus colegas e obedecer os horários.
Vários seres aquáticos, entre os quais o Boto Jurandir, o Jacaré Lelé e o José Carlos Sardinha, combinaram:
– Araruta, araruta, quem chegar atrasado amanhã é cria da truta.
Cascudinho colocou o despertador e, no dia seguinte, acordou bem cedinho. Mas no caminho aconteceram, de fato, coisas inacreditáveis, impedindo-o até de aparecer na hora da merenda. Todo mundo sentiu sua falta. Quando ele chegou no final da aula, só quem acreditou nele foi a Zezé Tucunaré, que correu para contar tim-tim por tim-tim à Traíra Elisa, sua avó.
– Você é mentiroso? Perguntou Jaú Dudu.
– Sim, sou mentiroso.
Um silêncio constrangedor tomou conta da Escola do Igapó, quando o apapá amarelo, que é uma espécie de sardinhão, disse:
– Ora, se Cascudinho é mentiroso, isso significa que ele está mentindo na hora que diz que é mentiroso, portanto, se ele está mentindo é porque o que conta é verdade.
A fantasia
Foi aí que a Zezé Tucunaré fez uma reflexão sobre o ato de narrar, a função da história e o sentido da fantasia, num discurso que ecoou pelos rios da Amazônia, ouvido atentamente, entre outros, pelo Manu Pirarucu, o Cuiu-cuiu e o Aruanã, na primeira fila da beira do rio:
– Peixes amazonenses da capital e do interior do estado, meus companheiros e companheiras de lutas e de ideais.
A Tucanaré prosseguiu, ponderando que a vida não é só aquela que um peixe viveu, mas o que ele recorda e como recorda ao narrar. Citou Nabokov, que gostava de nabo e couve, para quem “a memória é um músculo da imaginação”. A arte não é um relatório do que vemos, mas uma narrativa que nos faz ver. Uma boa história não é uma fotografia 3 x 4 da realidade, mas “uma mentira que nos aproxima da realidade”, como queria Picasso. A Tucunaré reivindicou ainda a existência de um outro patamar de verdade:
– Se uma história criada pela fantasia nos ajuda a compreender o que antes era incompreensível, se nos ajuda a ver o que antes não víamos, passa a fazer parte do nosso mundo e dá sentidos a ele.
Exemplificou com as histórias do Cascudinho vividas por 61 atores aquáticos. Embora sem a pretensão de ser um minitratado de ictiologia, apresentam um painel de peixes da bacia amazônica, destacando algumas características básicas de cada um. Operação similar está no conto “A sogra do Jacamim”, recolhido por Barbosa Rodrigues no Amazonas, cujos protagonistas são os pássaros, que inspiraram Cascudinho junto com o livro Tiddler, the story-telling fish escrito por uma inglesa, Julia Donaldson e ilustrado por um alemão Axel Scheffler.
No final, Cascudinho pula para a terceira margem do rio e se despede:
– Era uma vez a rainha Vitória, soltou um pum e se acabou a história.
P.S.1 – Nesses tempos sombrios de barbárie e de fake news, de violência institucional contra os índios, a floresta e os rios, podemos buscar um a literatura, o conto, a poesia, a música, a arte, que nos humanizam e são sempre refúgio de reflexão para que a gente não fique como eles. Ele não!
P.S. 2 – Como alguns amigos perguntaram como adquirir o livro, ele pode ser encontrado em Manaus, na Rua José Clemente, 608 e no e-commerce https://lojavirtual.editoradobrasil.com.br/