Por Roberto Amaral:
Retomo à questão das reformas estruturais, esfinge a desafiar nossos governos de centro-esquerda (por que não as fazemos?) e desafio ideológico a provocar as esquerdas brasileiras. Quanto a estas, a evidência é que, afogadas pela necessidade de vitória eleitoral, terminamos renunciando ao debate, abrindo, assim, caminho para o avanço solitário do pensamento/ideário conservador.
O Brasil profundo, até 2012, vem votando na esquerda, ou mais precisamente em candidatos filiados a partidos programaticamente de esquerda, mas os ‘corações e mentes’ são conquistados pelo monopólio da direita impressa, com a demolição da política (de que depende a democracia) e da esperança, de que depende a esquerda. Um só dado: pesquisa em poder do TSE informa que 80% dos jovens brasileiros rejeitam a política, não crêem na política, muito menos nos partidos e nos políticos. A tragédia não diz respeito exclusivamente às esquerdas (embora sua responsabilidade seja dominante) mas a todos que defendem o processo democrático: tire-se da política a política, os partidos e os políticos, o que ficará de pé para dar sustentação à vida democrática?
Já vimos esse filme.
Para ganhar, a esquerda brasileira (e que dizer da francesa de hoje e seu lamentável Partido Socialista?) está convencida de que precisa ganhar setores à sua direita (o centro e a direita propriamente dita) e para ganhá-los torna-se bem comportada nas alianças eleitorais, no discurso, e no programa, o qual, mesmo tímido, é o primeiro a ser jogado de lado, pois no governo a abelha-rainha é a ‘governabilidade’. Para governar se impõem concessões, nas alianças que garantam tranquilidade parlamentar, nas composições políticas, necessárias, com o empresariado e o monopólio da informação (com quem precisa estabelecer um modus vivendi), os movimentos sociais e os sindicatos. Estes são levados à redução corporativa, ou seja, renunciam ao debate político – a vítima de sempre –, em benefício da estabilidade do governo que ajudaram a eleger e têm o dever histórico de sustentar.
Diz-se que essa tragédia política é filha natural do presidencialismo brasileiro, ao possibilitar eleições de quadros populares (Lula e Dilma) e ao, ao mesmo tempo, negar-lhes maioria parlamentar para governar e conservar-se no governo, cujo poder precisam partilhar com outras forças sem abrigo na soberania popular, a começar pelo famigerado ‘mercado’, com tudo o que lhe é implícito. A fragilidade parlamentar é contornada pela construção rentista (daí ‘presidencialismo de coalizão’) de maiorias heterodoxas, internamente contraditórias e conflitivas. Nas composições eleitorais, em prejuízo sempre da grande política, as coligações se fazem e se compram em função dos minutos que o partido agregado traz para a campanha eleitoral do candidato; no governo, a coalizão é determinada pelo número de parlamentares que podem ser arregimentados nas votações de interesse do governo. Collor não caiu por força de seus desmandos, mas, efetivamente, porque não dispunha de maioria congressual, quando perdeu o apoio da ruas. Lula, apoiado nas ruas, conheceu o risco da ausência de base congressual, em 2005, o que quase lhe impôs um impeachment. Corrigiu-se.
Por isso mesmo, tendo, pelo menos a partir do segundo governo Lula, maioria congressual suficiente para fazer as reformas estruturais, não as ousamos. Nem mesmo promovemos a institucionalização dos nossos programas sociais – Luz para todos, Minha casa minha vida, Bolsa Família, etc.— os quais, assim simples programas e não políticas de Estado (nível ao qual não são alçados) correm o risco de serem jogados na lata de lixo na primeira derrota eleitoral que soframos, alternativa que não desejamos mas para a qual precisamos estar atentos, pois conquistamos um governo republicano e não uma monarquia
Ora, nossas eleições apenas se justificam – pelo menos esse deveria ser o sentimento coletivo— enquanto instrumento de reforma (isto mesmo, apenas reforma, ainda no âmbito da correlação de forças atual e sem abalar as bases do sistema) do Estado. Fora daí, a política fica reduzida a uma discussão despolitizada, inodora, em face de indices de eficiência administrativa, como se os feitos administrativos não tivessem alma e coração políticos e ideológicos.
A reforma do Estado brasileiro (ou sua simples modernização) se discute desde sempre, mas as transformações significativas se operam na transição da estrutura monárquica para a republicana, quando, numa aparente contradição, se consolida o poder rural-oligárquico, reacionário, anti-desenvolvimentista, ensejando a ditadura da política do ‘café com leite’.
A ‘revolução’, de 30, um conflito inter-oligárquico, se resolveu mediante sua negação, o golpe de 1937, que implantaria a ditadura Vargas. Assim é que, sob o autoritarismo, começaria a construção do moderno Estado brasileiro, tanto do ponto de vista político-social (a estruturação da ordem burocrática com o DASP, a legislação trabalhista e previdenciária etc.), quanto do ponto de vista econômico, criando a infraestrutura sobre a qual poderia o país, no seu capitalismo tardio, ingressar na industrialização, a promessa de nossa libertação de todas as amarras do subdesenvolvimento. São dessa época o Código de Águas, o Conselho Nacional do Petróleo, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Justiça do Trabalho e a Consolidação das Leis do Trabalho.
A construção dessa base seria retomada no Segundo período Vargas, o democrático (1951-1954), de viés nacionalista, quando o Estado retoma o papel indutor do desenvolvimento. É dessa fase a Petrobras. Nenhuma reforma do Estado, porém.
A era Vargas, que o tucanato jurou enterrar, renasceria, tênue, no quinquênio JK (1956-1961) e o seu surto industrialista, dependente do capital estrangeiro. Nenhuma reforma estrutural, embora, e talvez seja essa a melhor herança do quinquênio, tenha o país descoberto que o subdesenvolvimento não era um determinismo, como ensinavam os pensadores do conservadorismo e do desenvolvimento nacional dependente dos interesses das grandes potências.
A questão das ‘reformas de base’ veio à tona, com todas as letras e as consequências conhecidas, no governo Goulart (1961-1964). Os pleitos de hoje são ecos do pleito de então: reforma agrária, reforma urbana, a reforma política, a reforma da educação…
A ditadura militar, de Costa e Silva em diante, retoma o projeto modernizante, mas seu objetivo era fortalecer o Estado conservador. A reforma política visa a sufocar a democracia, e a reforma da educação destrói a escola pública.
Os primeiro governos reformistas, após o fim do regime militar, seriam os dois períodos Lula, continuados por Dilma. Mas, não obstante sustentar-se em uma correlação de forças, a qual, ampla, amplíssima, e talvez por isso mesmo (pela sua heterogeneidade), não lhe assegura a realização de uma só das ‘reformas de base’ das quais ainda carecemos no terceiro milênio. Está por ser feita a reforma tributária, a primeira peça da real democratização de nosso país, como a reforma do judiciário, como a reforma política sem a qual a democracia representativa permanecerá como agora, uma promessa frustrada pelo controle do poder econômico e dos meios de comunicação de massa. Não se fez a reforma do ensino militar, que continua reproduzindo o pensamento de direita. Não se reviu o pacto federativo. Ou seja, o Estado da esquerda é, ainda, o Estado deixado pelos militares e aperfeiçoado em suas distorções perversas nos oito anos de FHC.
Aparentemente preocupadas tão-só com a ocupação burocrática do Estado, a esquerdas ficaram à direita dos governos que ajudaram a eleger, e, renunciando nossos partidos aos seus deveres como vanguarda, transformaram-se em instrumento de acomodação das massas, pela via da domesticação dos sindicatos.
Penso que este seria o debate que os partidos de esquerda deveriam, talvez até em conjunto, promover no vestibular das eleições de 2014, quando seremos julgados mais pelos nossos erros e omissões do que pelos nossos muitos méritos como gestores do Estado burguês.