Dois crimes cometidos por pistoleiros – um há mais de trinta anos, no Acre, fronteira com a Bolívia, o outro, na semana passada, em Mato Grosso do Sul, fronteira com o Paraguai – têm em comum o fato de ambos estarem relacionados à luta pela terra e despertarem em nós uma insaciável sede de justiça, confundida, às vezes, com desejo de vingança. De qualquer forma, não podemos calar diante da morte de dois homens bons.
Um deles é o cacique guarani, Nísio Gomes, assassinado recentemente por pistoleiros que invadiram o acampamento indígena na terra Guaiviry (MS). O outro, Wilson Pinheiro, o Wilsão, alvejado com três tiros nas costas, em 1980, no momento em que assistia o noticiário da TV, na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia (AC), do qual era presidente. A morte do cacique me fez lembrar a do líder sindical, ambas executadas pelo agrobanditismo, que agora atua com milícia armada paramilitar.
É que o sentimento de impotência é similar nos dois casos. Suas mortes nos deixam uivando por justiça e aumentam ainda mais nossa descrença em relação ao Poder Judiciário, de cuja vontade e capacidade sinceramente desconfiamos. A omissão da investigação policial e dos tribunais funciona como um incentivo para se fazer justiça com as próprias mãos, o que não é uma forma correta de aplicar a lei. No caso do Wilsão, se buscou estratégias alternativas de mobilização popular, mas deu no que deu.
A água da onça
Ninguém me contou, eu vi e ouvi. Fui a Brasiléia (AC), dia 27 de julho de 1980, para o comício de protesto contra o assassinato do Wilsão. Subi no caminhão que servia de palanque, onde estava sua camisa ensangüentada. Era de noite. O silêncio se fez tão eloqüente que se podia ouvir o barulho dos insetos batendo na única lâmpada colocada em frente à sede do sindicato – uma modesta casa de madeira. Discursos inflamados, escutados atentamente por mais de 4 mil pessoas durante quase cinco horas, desfilavam um rosário de denúncias de mortes, de ameaças e de tentativas de assassinatos.
O diretor do Sindicato de Brasiléia, o “Paulista”, estipulou um prazo de dois dias para a polícia prender o criminoso: “Nós não queremos fazer justiça com as próprias mãos, mas se as autoridades não encontrarem os criminosos, vamos ser obrigados a agir”. Foi nesse contexto que Lula, então presidente do PT, fechou o evento. Era quase meia-noite. Entre outras coisas, ele afirmou:
– Chegou a hora de a onça beber água.
Um grupo de trinta trabalhadores rurais saiu direto do comício para armar uma emboscada, onde foi morto o capataz da fazenda Nova Promissão, Nilo Sérgio de Oliveira, autor do assassinato de Wilson. A onça bebeu água. Lula e Jacó Bittar foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional, acusados de incitação ao crime. Responderam a processo na Justiça Militar.
E no caso do cacique guarani, como é que a onça vai beber água? Os alunos indígenas dos cursos de História e Ciências Sociais da UEMS, moradores da aldeia Amambaí, respondem indiretamente a pergunta, numa carta sobre o acontecimento escrita por sugestão de sua professora, a antropóloga Aline Crespe.
A carta relata que mais de 40 pistoleiros invadiram o acampamento indígena. Deram o primeiro tiro na garganta do cacique, seu corpo começou a tremer. Atiraram depois no peito e na perna. O neto pequeno viu o avô no chão e correu para abraçá-lo. Um pistoleiro começou a bater com uma arma no rosto de Nísio e, no final, chutaram seu corpo para ver se ele estava morto e ainda deram mais um tiro. Ergueram o corpo e jogaram na caçamba da caminhonete, seqüestrando o cadáver.
A brutalidade da execução e a conduta com o corpo são a assinatura do agrobanditismo ‘político’ que marca as disputas de terra. Diz a carta:
“Nós estamos aqui reunidos para pedir união e justiça neste momento. Afinal, o que é o índio para a sociedade brasileira? E onde estão nossos direitos, os direitos humanos, a própria Constituição? E nós estamos aí sujeitos a essa violência. Os índios vivem com medo, medo de morrer. Mas isso não aquieta a luta pela demarcação das terras indígenas. Porque Ñandejara está do lado do bom e com certeza quem faz a justiça final é ele. Se a justiça da terra não funcionar a justiça de Deus vai funcionar”.
O que é notícia
Chamados de “teólogos da floresta” pela antropóloga Helene Clastres, os guarani clamam pela justiça terrena, e confiam na justiça divina. A onça deles é Ñandejara – Nosso Senhor. De qualquer forma, eles estão exigindo que as instituições funcionem e que a justiça seja feita. A nossa capacidade de indignação deve ser canalizada para apoiar o clamor dos índios.
Um manifesto pedindo a punição dos assassinos de Nisio circulou nessa sexta-feira no Museu do Indio, durante o lançamento do livro Povos Indígenas no Brasil 2006-2010 produzido pelo Instituto Sociambiental (ISA). O livro será lançado em Manaus na próxima quarta-feira, dia 30.
No livro, com quase 800 páginas, vem o resumo de 810 matérias extraídas de 175 fontes no período de 2006 a 2010, entre os quais jornais de circulação nacional e jornais locais de quase todos os estados brasileiros. Traz fotos, iconografias, mapas, documentos, depoimentos, 166 artigos assinados por especialistas, enfim, um painel panorâmico do que aconteceu com os diferentes povos indígenas nesses últimos cinco anos, no campo da luta pela terra, educação, saúde, línguas, cultura.
É interessante observar que grande parte das notícias publicadas pelos jornais sobre o tema é o resultado de um movimento feito pelos índios em direção à mídia. São poucas as matérias pautadas pelos próprios jornais, por iniciativa das empresas de comunicação, em que seus repórteres são enviados às aldeias indígenas em busca de informação.
Nos manuais que circulavam nos cursos de jornalismo era comum se definir notícia por aquilo que um fato tinha de inusitado, de inesperado. “Se um cachorro morde um homem, isso não é notícia, notícia é quando um homem morde um cachorro”, era assim que nos ensinavam os velhos manuais.
Seguindo esse modelo, o assassinato de um índio não é notícia, afinal desde 1500 se vem matando índios nesse país. Só em 2010 ocorreram 60 assassinatos de índios, 34 dos quais em Mato Grosso do Sul. Mas isso não é notícia. Notícia seria se os pistoleiros fizessem com o filho de um desembargador ou de um rico empresário aquilo que fizeram com o cacique guarani. Notícia, só quando a onça bebe água.