Por Ribamar Bessa:
O Diário do Iguaçu de Chapecó (SC) acabou sendo vítima de seu próprio veneno. Vejam só a manchete chocante da edição de 3 de maio de 2016, cuja foto de capa circulou nas redes sociais: “GERÊNCIA DE SAÚDE AFIRMA QUE NÃO VAI FALTAR VAGINA”. A pergunta que se impõe é: foi erro de revisão, incompetência, sabotagem ou sacanagem?
A mesma pergunta pode ter sido feita quinze anos antes pelos índios quando leram no mesmo jornal matéria igualmente surpreendente, em janeiro de 2001, ilustrada com uma charge. É a entrevista com o vereador Amarildo Sperandio, então do PFL (vixe, vixe), que afirmou ser “um absurdo os índios quererem mais terra, se não produzem“. Ignorante, alegou que “muitos na reserva de Toldo Chimbangue, louros e de olhos claros, não são indígenas autênticos“. A charge assinada por Alex Carlos mostra um “homem branco” armado com um machado, que ameaça um kaingang:
– “Já que índio quer terra, vou dar sete palmos de terra pro índio“.
Diante da morte anunciada, no outro quadrinho o índio foge, deixando cair um celular, como “prova” da “falsa identidade” dos Kaingang da região. Está implícito que a terra assim desocupada pelos “falsos índios” pode ser invadida pelas “classes produtoras” que respiram, enfim, aliviadas.
A incitação ao crime levou os Kaingang a procurar o Ministério Público Federal (MPF) que processou o jornal. Mas o Poder Judiciário local fez o que se costuma fazer na primeira instância: julgou a ação improcedente. Afinal, se você abrir a cabeça de um juiz vai encontrar lá dentro, quase sempre, fé em preconceitos, a mesma fé que existe na cachola de um jornalista, ou o plural aumentado de fé, que é fé de mais. Juiz e jornalista estudam na mesma escola, assistem os mesmos programas de tv, leem o mesmo jornal e compartilham a mesma desinformação intolerante sobre as culturas indígenas.
Danos morais
O MPF, porém, recorreu ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, que fez justiça e condenou os acusados a pagarem R$ 100 mil aos Kaingang por danos morais coletivos causados pelas matérias racistas. Os réus interpuseram recursos no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que se arrastaram nos últimos doze anos, mas nenhum deles foi admitido. O caso transitou em julgado. Com a condenação definitiva em abril de 2016, o MPF ajuizou ação para os condenados pagarem R$ 850,00 de indenização em valores atualizados, com juros, honorários e multas.
O Diário do Iguaçu, tabloide colorido criado em 1997, com tiragem de 10 mil exemplares diários, feito por 130 trabalhadores diretos e terceirizados, alegou impossibilidade de efetuar o pagamento, sob o risco de falir como O Iguaçu, seu antecessor, o que não é uma boa notícia. Trata-se do principal veículo impresso do interior de Santa Catarina, com correspondentes e sucursais nas principais cidades da região, vários cadernos temáticos que cumprem uma função educativa e são usados nas escolas.
O cacique da Terra Indígena Toldo Chimbangue, Idalino Fernandes, deu provas de sabedoria e não deixou o jornal morrer:
– “Eles disseram que se fossem pagar em dinheiro, teriam que fechar o jornal. Eu disse: nós não queremos dinheiro, queremos que vocês contribuam com a comunidade, informando as pessoas para que elas saibam os absurdos que vocês falaram. Precisamos também de pessoas formadas em Direito e Pedagogia. Isso é mais importante que dinheiro”.
A indenização
Da negociação entre as partes, nasceu um acordo interessante. O jornal custeia estudantes indígenas na Universidade Comunitária Regional de Chapecó (UnoChapecó) em vagas nos cursos de agronomia, direito e enfermagem, além de uma turma de 20 a 30 professores indígenas num curso de pós-graduação em Educação Intercultural: Metodologias de Ensino na Educação Básica. O pagamento do jornal à Universidade será feito através de permuta com a cessão de espaço.
Além disso, o Diário do Iguaçu fica devendo ainda R$ 390 mil para saldar toda a dívida. Os Kaingang aceitaram que o resto seja pago também por meio de cessão de espaço. Durante cinco anos, o jornal vai publicar informativos, artigos, notas e quaisquer outras publicações de interesse dos índios, solicitadas pelo cacique Idalino. De repente, pela primeira vez na história do país, um jornal pode publicar uma coluna bilíngue português x kaingang, valorizando a língua, furando o bloqueio do racismo e dando maior visibilidade aos índios.
O inédito acordo judicial permite que os Kaingang usem mais um instrumento para combater a ignorância, a barbárie e o preconceito, que já foram responsáveis por muitas mortes, incluindo a de Vítor Pinto, uma criança Kaingang de dois anos, da Aldeia Kondá, comunidade indígena de Chapecó, degolada em dezembro passado no colo de sua mãe quando ela vendia artesanato no litoral catarinense. O Procurador da República de Chapecó (SC), Carlos Humberto Prola, considera que “o acordo é importante pela autonomia que os indígenas terão na gestão do espaço no jornal”.
O cacique Idalino concorda, argumentando que “o preconceito era muito forte, a maioria da população de Chapecó era contra a gente sem falar nos vereadores, que sempre faziam discursos contrários”. Depois da decisão do TRF, as manifestações racistas dos vereadores cessaram, ao menos publicamente, informa nota do Conselho Indigenista Missionário (CIMI-Sul).
Troca de letra
As manifestações racistas ocuparam as páginas do jornal durante todo o tempo em que o processo transitou nos tribunais. O Sindicato dos Professores de Santa Catarina repudiou publicamente outra charge publicada em 09 de agosto de 2012, que discrimina alunos cotistas das universidades federais, acusando o Diário do Iguaçu de não apurar os fatos para informar com imparcialidade. A nota conclui:
– “Um veículo tendencioso e preconceituoso não deveria fazer parte da leitura diária dos catarinenses. Esperamos que a direção desse Jornal se retrate, pois pais, alunos e professores de Chapecó e região estão revoltados pela desqualificação da escola pública apresentada na referida Charge. Esperamos ainda que o Jornal não volte a tratar de qualquer questão de forma discriminatória e desrespeitosa”.
Ah, e a falta de vagina? Pesquisa feita por Riomar Bruno revela que a manchete verdadeira do jornal foi outra, mas alguém a adulterou com uma caneta, transformando a letra “c” de vacina na letra “g”, tirou uma foto e publicou no facebook. Mas nem por isso as vacinas deixaram de ser vacinas da mesma forma que os kaingang continuam kaingang, independente das adulterações feitas. De qualquer forma, com a decisão judicial, suspeito que depois disso não haverá mais vagina em Chapecó.
P.S. – Agradeço a Natalie Unterstell pela informação sobre o andamento e resultado do processo movido pelos Kaingang.