– Você é um velho... – eu disse em voz alta para todo mundo ouvir. E completei: – … mas só quando fala.
O “velho” no corpo de menino respondeu com um sorriso tímido. Ele sabia que era um elogio ao seu discurso brilhante em um evento na Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande (MS). Foi em 2011, o terena Luiz Henrique Eloy Amado, 23 anos, recém-formado em direito, acabara de redigir sua monografia premonitória justamente sobre “O Supremo Tribunal Federal (STF) como construtor da Constituição”, focando na demarcação das Terras Indígenas. Na ocasião, o historiador Antônio Brand profetizou: “Ele promete”.
Prometia. E cumpriu. Na segunda-feira (3), o doutor Eloy, aos 32 anos, ainda imberbe, discursou como se tivesse cabelo branco e barba salpicados de sabedoria. Falou na Corte Suprema do País como advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) na ação judicial ADPF nº 798, ouvido atentamente pelos ministros togados. Finalmente, na quarta-feira (5), quando o cacique Aritana Yawalapiti completava a lista trágica de 625 indígenas mortos por Covid-19 e mais de 22 mil casos confirmados em 148 povos diferentes, o STF, por unanimidade, decidiu obrigar o governo a conter o avanço do covid-19 nos povos indígenas.
“Dar de beber a quem tem sede” é uma obra de misericórdia, que está no Evangelho. Mas Bolsonaro, nada misericordioso, havia vetado até a distribuição de água potável às aldeias, cujos rios foram contaminados pelo garimpo, alegando falta de recursos, quando para abastecer todas as aldeias do país bastava devolver o dinheiro público das “rachadinhas” depositado por Queiroz nas contas de seu filho Flávio e de sua mulher Michele. Agora, o STF, depois de ouvir Luis Henrique Eloy, confirmava de forma integral a liminar de julho do ministro relator da ação da APIB, Luis Roberto Barroso, determinando medidas de proteção aos indígenas.
Grito de Socorro
Foi a primeira vez, em 520 anos de Brasil, que uma ação indígena com um advogado indígena entrou num tribunal. O presidente do STF, Dias Toffoli, concedeu 12 minutos a Luis Enrique Eloy Amado, tempo suficiente para dizer tudo o que era preciso e lançar “o grito de socorro dos povos indígenas”.
– Durante muitos séculos – ele falou – esta qualidade de sujeito ativo de direito nos foi negada. Ainda no período colonial pairava a dúvida se os índios seriam seres humanos, se tinham alma. Foi preciso uma Bula Papal para reconhecer a humanidade dos índios. […] Depois instrumentalizou-se a tutela legal, na qual os índios não podiam falar por si mesmos. Sempre tinham que pedir licença para os puxarará, termo da língua terena utilizada para se referir aos brancos. Foi somente com a Constituição de 1988 que os índios, suas comunidades e organizações tiveram reconhecido o direito de estarem em juízo defendendo seus interesses.
Certamente a voz do advogado Terena contribuiu para que os ministros do STF – todos puxarará, todos purutuyê – firmassem sua posição em favor dos índios, seguindo a experiência do ministro Ayres Brito, que começou o relato do processo da Terra Indígena Raposa Serra do Sol com a mentalidade do General Custer, o carrasco dos índios norte-americanos do séc. XIX, mas depois de conversar com os Makuxi e Wapixana, passou a pensar como Touro Sentado, que resistiu ao massacre da Cavalaria do Exército na batalha de Little Bighorn.
Com dois pós-doutorados – um na École des Hautes Études en Sciencies Sociales, na França, o outro na Brandon University, no Canadá – o menino sábio se gabaritou para argumentar que “para proteger a vida indígena, faz-se necessário proteger os seus territórios”. Lembrou o período da ditadura militar, quando “a distribuição de roupas foi utilizada como forma de extermínio dos indígenas”. Denunciou “a precariedade do sistema de atenção à saúde indígena”,a invasão das terras, os desmatamentos, o envenenamento dos rios e salientou que os territórios habitados atualmente por 305 povos falantes de 274 línguas, desempenham importante papel no equilíbrio da vida humana.
A queda do céu
Depois de reiterar a necessidade de medidas para a imediata retirada dos invasores das Terras Indígenas, concluiu seu discurso citando Davi Kopenawa em “A queda do céu”: “Não voltem à nossa floresta! Suas epidemias xawara já devoraram aqui o suficiente de nossos pais e avós. Não queremos sentir tamanha tristeza de novo. Abram os caminhos para seus caminhões longe de nossa terra”.
O STF foi, assim, palco de um debate que vem ocorrendo no meio jurídico desde os tempos coloniais, embora sem o protagonismo indígena. O mais ruidoso ocorreu em Valladolid, em 1550-51, na histórica polêmica entre Las Casas, advogado dos índios e pioneiro na luta pelos direitos humanos e Juan Sepúlveda, advogado dos “encomenderos” – o agronegócio e as mineradoras da época – que justificava o uso da força para escravizar índios e usurpar suas terras.
Agora Eloy, no STF, parecia o menino Jesus aos 12 anos no templo de Jerusalém “assentado no meio dos doutores, ouvindo-os e interrogando-os, e todos os que o ouviam, maravilhavam-se com sua inteligência e respostas” (Lucas 2:39-52). Mas os fazendeiros, nada maravilhados, criaram obstáculos explorando seu ar de menino. Nos cartórios do fórum lhe diziam que “estagiário não pode pegar processo”. Na Assembleia Legislativa de MS, os fazendeiros alegaram que ele não possuia registro na OAB para advogar em nome da causa terena. Nos dois casos, foi preciso pendurar no pescoço seu diploma de advogado e a carteirinha da OAB.
O advogado Terena incomoda o poder econômico e político. Ele entrou recentemente com recurso na Justiça Federal e conseguiu suspender o “leilão da resistência” organizado para arrecadar fundos destinados a contratar seguranças para as fazendas e para a compra de armas. Os fazendeiros recorreram e fizeram o leilão, mas outra ação acabou bloqueando o dinheiro (cerca de R$ 1 milhão). É uma luta sem trégua.
Sem argumentos para contraditá-lo, os fazendeiros, através da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB-MS, tentaram duas vezes cassar o registro profissional do advogado Luis Henrique Eloy Amado, por ele ter atuado em processos de demarcação de terras indígenas em áreas ocupadas por fazendas e “por ter defendido tese de mestrado em área de retomada”, exibindo como “prova” seu currículo e postagens no Facebook. A solicitação era tão estapafúrdia que a OAB emitiu parecer contrário.
Luis Eloy atua na esfera criminal, defendendo indígenas criminalizados por lutarem pela reintegração de posse e demarcação de terra e ainda como assistente de acusação nas ações criminais que têm como vítimas lideranças indígenas assassinadas por pistoleiros. Realiza também oficinas nas comunidades, compartilhando seus conhecimentos sobre direito indígena.
As penas das garças
De onde esse menino tirou tanta sabedoria? Do diálogo que estabeleceu entre o direito consuetudinário, que circula oralmente no discurso dos sábios Terena e nos códigos escritos que aprendeu a dominar em diferentes centros: na Faculdade de Direito e no mestrado na UCDB, assim como nos dois doutorados que cursou: um em Sociologia e Direito na Universidade Federal Fluminense (UFF) escrevendo sua tese sobre a teoria do direito indigenista brasileiro e o outro em Antropologia Social no Museu Nacional/UFRJ com a tese “Vukapanavo: o despertar do povo Terena para os seus direitos – movimento indígena e confronto político” defendida em 2019.
Foi uma vitória. Mas os ministros do STF deixaram de fora da decisão a retirada imediata dos invasores que estão em sete Terras Indígenas. “A luta continua. Temos que fiscalizar e cobrar a eficácia da decisão judicial. O processo está apenas começando” – disse Luis Henrique Eloy Amado, herdeiro da oratória eloquente dos sábios indígenas, mas também dos juristas que transitam na academia.
No seu discurso circulam a pluralidade de vozes de tudo o que ouviu, leu e aprendeu. As falas que ecoaram na voz de Eloy, no STF, foram as de Dona Nena, da aldeia Água Branca, de Henrique Hópuku’yty, Marcolino Wolili, Antônio Pikihi, Joênia Wapixana, Sônia Guajajara, Raoni, Ailton Krenak, mas também obras de Bartolomé de Las Casas, Carlos Marés, Clovis Bevilaqua, Manuela Carneiro da Cunha e tantos outros que se ocuparam do direito indígena.
Nascido na aldeia Ipegue – termo terena para designar o lugar onde as garças renovam suas penas – Eloy voltou lá para renovar as suas e entregar o diploma de doutor à sua mãe, dona Zenir, cujo orgulho é compartilhado pelos setores comprometidos com a justiça no Brasil. Vukápanavo, Eloy! Avante!
P.S. Fotos de Leonardo Milano e outro autores não identificados. O “envelhecimento” na foto de Eloy foi obra de Amaro Júnior.