RIO – Enquanto o dia está claro, o urubu é soberano no espaço aéreo de 18 aeroportos da Amazônia. A Aeronáutica impôs restrições ao pouso e à decolagem diurnos nesses lugares em decorrência do risco aviário. O problema reflete o avanço da degradação ambiental no coração da floresta, pois a maior parte dos aeroportos está localizada no interior e convive com lixões improvisados. E os dejetos, da maneira como são lançados, oferecem um banquete farto à proliferação de urubus.
Consumidores de carcaças de animais, os urubus-de-cabeça-preta (Coragyps atratus), comuns nos céus amazônicos, voam a grandes alturas, durante o processo de digestão, de dia. Pelo perigo que representam, deveriam ser considerados os vilões da segurança aérea. Mas, ao contrário, eles próprios são também vítimas do fenômeno. Ironicamente, essa ave que não tinha predadores passou a ter um: as turbinas e as fuselagens dos aviões, em situações de alto risco para os passageiros.
– Teoricamente, esses animais são até benéficos para o meio ambiente, pelo fato de comer as carniças – explica o engenheiro agrônomo Antônio Ademir Stroski, presidente do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam).
Abatedouros clandestinos agravam os ricos
O problema, nesse caso, não é a ave, mas as facilidades que ela encontra para se alimentar. Em regiões carentes de estradas, as prefeituras locais aproveitam os acessos aos aeródromos para também utilizá-los no transporte do lixo, que é jogado em terrenos transformados em lixões sem qualquer cuidado. Outro estímulo à superpopulação de urubus é a atividade dos abatedouros clandestinos, responsáveis pelas carcaças descartadas sem o menor cuidado.
O urubu está entre as dez aves mais comuns em casos de colisão com aeronaves. Uma dessas aves pode pesar até quatro quilos. Sendo assim, quando uma aeronave a 400 quilômetros por hora se choca contra um urubu, o impacto é equivalente a 12 toneladas.
De acordo com o 4º Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (Cidacta IV), há restrições de voo em seis aeroportos do Amazonas (Manicoré, Carauari, Itacoatiara, Eduardo Gomes (Manaus), Parintins e Tefé), sete do Pará (Tucuruí, Altamira, Júlio Cesar (Belém), Val de Cans (Belém), Marabá, Santarém e Itaituba, três do Acre (Tarauacá, Cruzeiro do Sul e Rio Branco) e dois do Maranhão (São Luís e Balsas).
Restrições, explicam as autoridades aéreas, não significam veto à operação de aeronaves, mas limitações como nos horários de voos (alguns aeroportos só podem funcionar à noite, quando não há urubus planando) e em pistas específicas, como no aeroporto internacional Eduardo Gomes, o maior do Amazonas (restrições no lado direito da cabeceira da pista 28).
– O problema todo está diretamente ligado à gestão dos resíduos sólidos. É um processo de muito tempo. A oferta de alimentos faz o urubu procurar as áreas urbanas. O desequilíbrio se transforma em risco para a população.
Mais da metade dos dejetos lançados nos lixões é de natureza orgânica (restos de carcaça e vísceras de animais). Nas cidades do interior, onde o principal meio de transporte é o barco, as estradas são raras, curtas e aproximam aeroportos e lixões. O baixo valor imobiliário dessas áreas, geralmente periféricas, reforça ainda mais a sua escolha para receber o lixo da cidade.
Para Antônio Ademir, é mais um erro das prefeituras degradar as áreas periféricas com lixões, pois a tendência agora é a valorização de espaços ainda não ocupados pelas populações locais, que ainda mantêm cobertura florestal.
O governo do Amazonas resolveu atuar. Recentemente, em seminário que reuniu representantes de 62 municípios, prometeu liberar recursos para que cada cidade elabore um plano municipal de gestão de resíduos sólidos. O principal objetivo é erradicar os lixões e destinar os dejetos para aterros sanitários com capacidade para receber até 20 toneladas diárias.
A segurança do voo não é o único risco provocado pela descarga desordenada de lixo. O presidente do Ipaam adverte que, além da proliferação de urubus, atrai muitas moscas e outros vetores de doenças. Outro risco é a transformação dos resíduos em substâncias solúveis, que acabam levadas para rios e para lençóis freáticos pelas chuvas.
Números divulgados pelo IBGE, na Síntese de Indicadores Sociais, mostram o tamanho do problema. Em 2009, apenas 13,7% dos domicílios urbanos da Região Norte tinham serviços de água, saneamento básico e coleta de lixo. Nas áreas mais pobres, o índice não chegou a 10%.
Festa de Parintins quase fica sem voos diurnos
O risco aviário quase provoca um colapso na tradicional festa do Boi de Parintins, prevista para o último fim de semana de junho. No ano passado, a pedido da Procuradoria da República do Amazonas, o juiz federal Dimis da Costa Braga, da 7ª Vara Especializada (Ambiental e Agrária), proibiu pousos e decolagens de voos diurnos enquanto não fosse tomadas providências para livrar o aeroporto local do risco aviário.
No mês passado, após analisar relatório do Serviço Regional de Investigação e Prevenção de Acidentes, atestando que a prefeitura teria cumprido providências para afastar os urubus, o juiz voltou atrás e liberou os voos diurnos. Parintins, todavia, continua na lista de aeródromos amazônicos restritos.
Além da ação contra a cidade do festival, o Ministério Público Federal também está cobrando providências de sete cidades do Amazonas (Coari, Lábrea, Borba, Maués, Eurinepé, Barcelos e Santa Izabel do Rio Negro) para afastar os urubus das pistas de voo.
Na lista, há municípios, como Coari, que chegaram a assinar um termo de ajustamento de conduta (TAC), mas não cumpriram as exigências.
Levantamento da Aeronáutica mostra que, só no ano passado, foram registradas 936 colisões com aves no Brasil. Do total, 239 ocorrem no momento da decolagem, e outros 143, no pouso. No ranking das espécies envolvidas nos acidentes, o urubu fica em segundo lugar (85 casos), só perdendo para os quero-queros.
O Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias (Snea) divulgou que, só em 2009, o setor perdeu US$ 2 milhões com o reparo de aeronaves avariadas no Brasil por colisões com aves – isso sem contar os prejuízos indiretos pelo cancelamento de decolagens.