Em dez anos, governo deixou de aplicar R$ 45,9 bilhões que, no papel, destinara ao setor
De O GLOBO , por Regina Alvarez
BRASÍLIA- A grave crise no setor da Saúde reflete, entre outros problemas, escolhas do governo no rateio dos recursos federais. Desde 2000 — quando entrou em vigor a Emenda Constitucional 29, que estabelece um piso de gastos para o setor — até o ano passado, o montante de recursos efetivamente aplicados caiu de 1,76% do Produto Interno Bruto (PIB) para 1,66%, na contramão do espírito da lei. Levantamento realizado pelo GLOBO mostra que, na área social, o setor foi o que mais perdeu na comparação com os demais. Na Educação, os gastos subiram de 0,97% para 1,29% do PIB nesse período. Na Previdência, pularam de 6,3% para 6,9%, e na Assistência, de 0,45% para 1,06% do produto.
Os números da execução orçamentária mostram enorme diferença entre o que o governo se comprometeu a gastar e o que, na prática, foi destinado à Saúde. De 2000 a 2010, a diferença entre os valores empenhados (prometidos) no orçamento da Saúde e o que foi efetivamente gasto no setor chega a R$ 45,9 bilhões, sem considerar a inflação do período. Só em 2010, essa diferença foi de R$ 6,4 bilhões.
Em 2010, se os valores empenhados no Ministério da Saúde tivessem sido efetivamente gastos no custeio do setor, a parcela do governo federal aplicada pularia de 1,66% para 1,83% do PIB. No ano passado, foram empenhados R$ 67,328 bilhões e, gastos, efetivamente, R$ 60,924 bilhões.
A Emenda Constitucional 29, aprovada em setembro de 2000, pretendeu assegurar um piso de gastos para a Saúde pública, que, na prática, tornou-se o teto das despesas. Além disso, o cumprimento pleno do piso constitucional é questionado pelo Ministério Público Federal e pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
Parte do previsto vira restos a pagar
O governo calcula o piso de gastos com base no montante de recursos empenhados para o setor somado à variação nominal do PIB — como estabelece a Emenda 29. No entanto, parte desses recursos não é executada no exercício e transforma-se em restos a pagar. Ou seja, é transferida para o orçamento do ano seguinte.
O que os procuradores do Ministério Público Federal do Distrito Federal (MPF-DF) e o Tribunal de Contas da União (TCU) constataram é que uma parte desses restos a pagar é cancelada, após ter sido computada no piso da Saúde. A ação do MPF-DF, de outubro de 2010, reclama a devolução de R$ 2,6 bilhões que teriam sido subtraídos do piso por meio desse expediente.
— O governo tem deixado, a cada ano, bilhões em recursos destinados à Saúde como restos a pagar e, nos anos seguintes, cancela esses recursos. Aí está a fraude — alerta o médico Gilson Carvalho, especialista da área e consultor do Conselho Nacional de Secretarias Municipais da Saúde.
Ofensiva por mais gastos no Congresso
O encolhimento do orçamento da Saúde na esfera federal, combinado ao desvio dos recursos do piso para outras finalidades, serve para reforçar a ofensiva da oposição e da bancada da Saúde no Congresso, que luta, agora no Senado, para aprovar a regulamentação da Emenda 29, com a proposta original do ex-senador e agora governador do Acre, Tião Viana (PT). Essa proposta destina 10% da receita bruta federal para gastos com Saúde.
O governo, e em especial a equipe econômica, não aceitam a nova regra, que obrigaria a União a re$çar o orçamento da Saúde com cerca de R$ 19 bilhões já no ano que vem, segundo os cálculos da oposição. Mas a própria base do governo no Senado tem simpatia por essa proposta, o que assusta o Palácio do Planalto. É nessa fragilidade que a oposição trabalha fortemente para aprovar a nova regra para a Saúde.
Um mapa elaborado por líderes da oposição, em conjunto com a bancada da Saúde, a partir de de$ções públicas e conversas de bastidores, contabiliza apoio ao projeto em todos os partidos da base. Isso tem deixado o governo bastante preocupado. Segundo esse mapa, a oposição já contaria com 39 votos no Senado — sendo que precisa de 41 para derrotar o governo federal.
A decisão de pôr em votação a regulamentação da Emenda 29 está nas mãos do presidente do Senado, José Sarney, aliado da presidente $Rousseff. O senador, porém, também tem que administrar a forte pressão da bancada da Saúde e de senadores da própria base governista, já que o tema tem grande apelo junto à sociedade.
A senadora Ana Amélia Lemos (PP-RS), que vota com a oposição, disse que está confiante, porque Sarney prometeu colocar o projeto na pauta de votações desta semana. Ana Amélia destaca que, por falta de regulamentação da Emen$29, os municípios estão sendo prejudicados, pois aplicam muito mais recursos na saúde do que o limite constitucional. Ela cita o exemplo de Panambi (RS), cidade onde nasceu, que destina 32% das receitas para o custeio da Saúde.
— Trata-se de uma questão federativa que requer um tratamento justo e adequado — afirma.
A regulamentação da Emenda 29 estabelece que municípios devem destinar 15% das receitas à Saúde, e os estados, 12%.
O governo não quis comentar os números da execução orçamentária que mostram a redução nos gastos com Saúde, desde o início da vigência da Emenda 29, em proporção do PIB. O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, foi procurado ontem, mas sua assessoria informou que ele e o ministério não iriam se manifestar, porque não houve tempo para analisar os dados. O líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), também foi procurado para falar sobre a estratégia do governo na votação da regulamentação da Emenda 29 no Senado, mas não retornou às ligações.
Comentário meu: Além de gastarmos pouco, gastamos mal.