Do CONSULTOR JURÍDICO por Marília Scriboni
Há mais de três décadas, o marido de Alzira de Araújo morreu e deixou para ela uma pensão. No entanto, a cada ida ao banco, ela só recebia 75% do valor a que tinha direito. Em 2000, entrou na Justiça paulista para pedir a correção do benefício. Conseguiu o valor integral em 2001, mas a diferença dos atrasados nunca foi paga. Pela lei, a idosa de 102 anos deveria ter recebido o dinheiro em 2008. O revés se deu com a resolução do Conselho Nacional de Justiça, segundo a qual os entes devedores passariam a ter 15 anos para quitar suas dívidas. Com a novidade, Alzira pode ter que viver até os 117 anos para receber o que lhe é devido.
A realidade da centenária é compartilhada por pelo menos outros 400 mil credores, somente no estado de São Paulo. Juntos, eles esperam para receber, um dia, R$ 20 bilhões. A gravidade do quadro, somada à idade avançada de muitos que esperam pela quitação dos débitos, mais o espírito empreendedor de investidores e empresas, têm levado ao desenvolvimento de uma nova modalidade comercial: a compra e a venda de precatórios, tudo nos conformes da lei.
Um desses investidores foi procurar Alzira, oferecendo comprar seu título por cerca de 50% do valor de face. Ele chegou ao nome dela por meio do site do próprio Tribunal de Justiça de São Paulo. Em 2008, com a Emenda Constitucional 62, a responsabilidade pela elaboração de listas únicas recaiu sobre os Tribunais de Justiça do país. Com o pé atrás, sua filha, Edna de Araújo, de 60 anos, foi procurar o Marcatto, escritório voltado para a defesa de servidores públicos.
“Considerando algumas exceções pontuais, não vale a pena vender o precatório, por mais absurda que possa parecer essa afirmação se contraposta à caótica situação dos precatórios”, alerta Rafael Jonatan Marcatto, sócio-fundador do escritório, membro da Comissão de Dívida Pública da Ordem dos Advogados de São Paulo e também membro do Movimento dos Advogados Credores da Administração Pública, o Madeca.
A notícia que o advogado traz pode ser animadora para os milhares de credores. Segundo ele, depois de anos de descaso com o credor alimentar, a tendência é que a situação mude em três ou quatro anos, quando a Administração Pública já vai ter dado conta de 95% do que deve. “Por muito tempo, só se pagou o [precatório] não-alimentar. O Judiciário percebeu a falha e está buscando formas de quitar os débitos da Administração Pública. O pagamento dos precatórios alimentares deixa as pessoas mais felizes, e isso interessa a muita gente”, explica.
Na carona dessa tendência, por exemplo, o governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, assinou um decreto determinando que 50% do montante previsto para o pagamento em 2010 seja obrigatoriamente destinado ao pagamento dos créditos por ordem crescente de valor. Ou seja, os R$ 2,4 bilhões serão distribuídos, de forma prioritária, aos que menos têm a receber.
Qualquer credor pode vender seu precatório. Porém, segundo Marcatto, o melhor a fazer, ainda, é esperar pelo desenrolar da história, “a não ser que a pessoa precise muito do dinheiro”. E que história. Na maior parte das vezes, o valor que a pessoa consegue no mercado está muito abaixo do valor real do título. “A oferta é grande e a demora na execução do pagamento do precatório faz o valor pago pelas empresas cair”, revela.
A partir do momento em que o credor concordou em vender o precatório, ele deve observar todas as questões que merecem atenção em qualquer outro tipo de venda. Além disso, ele lembra que, ao repassar o direito de receber o débito a um terceiro, o credor “ajudará a aliviar cada vez mais a obrigação do estado de resolver definitivamente a questão”.
A responsabilidade do estado no assunto também é citada por outra advogada. A especialista em Direito Financeiro Eliane Izilda Fernades Vieira, do Fernandes Vieira Advogados Associados, vê esse tipo de transação com ressalvas. “A compra e a venda de precatórios é um calote institucionalizado. Quando o contribuinte deve, o Estado é feroz. Quando o inverso acontece, ele faz leis para o seu próprio bem. A Emenda Constitucional 62 só veio para favorecer o governo”, opina.
A emenda constitucional em questão mudou o regime do pagamento de precatórios, instituindo a fila dupla: de um lado, os credores alimentares e, de outro, os não-alimentares. Para os primeiros ficou decidido que assim que a decisão transitasse em julgado o valor deveria ser pago. Já o segundo grupo pode receber os valores em parcelas, que deverão ser pagas em no máximo dez anos. Em tese.
O que se vê são credores vendendo seus precatórios por, no máximo, 30% do valor de face. Ou, como explica Eliane, “por 10% do que eles valem de verdade, já que as empresas não consideram a correção monetária no momento da compra”. Para ela, o mais injustiçado com os as idas e vindas do tema é o credor.
Para aquele credor que decidiu vender seu precatório não sair mais prejudicado ainda, Eliane sugere algumas precauções: lavrar o contrato em cartório e procurar os serviços de um advogado são atitudes que podem prevenir problemas no futuro. “Senão a pessoa para de esperar pelo precatório e começa a esperar pela Justiça”, brinca. De qualquer maneira, como em qualquer contrato, o credor é protegido pelo Código Civil.
Um negócio arriscado
A empresa que consegue vencer a dúvida do credor e comprar o precatório para compensar tributos, como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), pode estar apenas no começo de uma batalha jurídica. Embora autorizada pelo artigo 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), a jurisprudência de alguns tribunais ainda vacila na concessão do direito legal. Como lembra Eliane, “o governo não pode se negar a receber seu próprio título”. Mesmo assim, municípios e os estados vêm desafiando a determinação.
Se depender da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, os títulos de precatórios que as empresas têm nas mãos pode se transformar em papel podre. No último 14 de dezembro, o colegiado rejeitou os Embargos de Declaração de uma empresa que tentava saldar seus débitos por meio dos precatórios.
No entendimento da corte, “as Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais estão obrigadas a observar as novas regras constitucionais trazidas pela Emenda Constitucional 62, razão pela qual, diante da revogação do artigo 70, parágrafo 2º, do ADCT, estão impossibilitadas de pagarem os precatórios de forma contrária à previsão constitucional, caso optem pelo regime especial, como no caso”.
O professor de Direito da Universidade de São Paulo Fernando Facury Scaff, em artigo publicado no livro Grandes Questões do Direito Tributário vai na contramão (Editora Dialética). “A própria norma constitucional previu esta possibilidade, criando uma espécie de ‘mercado de compra e venda de precatórios’, muitos dos quais para a quitação de tributos”. Mesmo com essa previsão, diversos entes devedores vêm questionando a compensação de débitos com a Administração Pública por essa via. A alegação é quase sempre a mesma, também empregada quando o assunto é a demora no pagamento dos credores: a aceitação da compensação dos tributos resultaria em rombos aos seus cofres.
Na opinião de Scaff, a questão dos precatórios é um problema político. “Algumas unidades federadas”, explica, “encontram-se absolutamente em dia com o pagamento de seus precatórios, tal como a União e alguns estados da Federação — curiosamente, dentre eles, alguns dos menos desenvolvidos”. E completa: “alguns entes federados desenvolvidos ‘financiaram’ seu desenvolvimento a custa da inadimplência de seus pagamentos judiciais”.
O advogado Telmo Schorr, do Schorr Advogados, conta que essa é uma das primeiras decisões na qual o STJ interpreta a Emenda Constitucional 62. De acordo com ele, caso esse seja de fato o entendimento a ser adotado nas decisões futuras, as empresas que hoje possuem precatórios ficam de mãos abanando. Para ele, “a empresa caiu no conto de quem prometeu e não cumpriu. O Estado é o último e grande beneficiário”.
Schorr acredita que a venda de precatórios pode ser boa para aqueles que estão na fila, já que o poder barganha das grandes empresas, principais compradoras desse tipo de título, é maior que o poder do cidadão comum.
Em artigo publicado no mesmo Grandes Questões do Direito Tributário, a professora da Universidade Federal do Paraná Betina Treiger Grupenmacher antecipou o entendimento do STJ. O argumento mais recorrente da Administração Pública, aponta Betina, é de que o uso de precatórios na compensação infringiria a ordem cronológica para pagamento, pois, aceitos os precatórios na compensação de tributo, estes estariam preferindo àqueles incluídos na ordem para pagamento.
Ela alerta: “o argumento é insubsistente, posto que a regra constitucional em comento é expressa no sentido de que a observância refere-se ao pagamento, que pressupõe desembolso em moeda por parte da autoridade pública. A compensação não está sujeita a tal disciplina”.
Mais otimista, o advogado Nelson Lacerda, do Lacerda e Lacerda Advogados, é categórico: os tribunais superiores vêm convalidando a possibilidade de compensação de tributos, como o ICMS, por meio de precatórios. A explicação para a rejeição dos Embargos de Declaração do STJ? “O STJ não analisa matéria constitucional. O caminho para quem deseja usar os títulos na compensação é o Supremo Tribunal Federal”, alerta.
De acordo com ele, com a aposentadoria do ministro do STF Eros Grau, em agosto de 2010, a matéria não foi mais apreciada pela corte. “Criou-se uma fila proposital no STF para não aumentar o volume de compensações”, revela.
Recentemente, o escritório de Lacerda venceu uma disputa entre a Administração Tributária de São Paulo e a Prisco Indústria e Comércio Ltda., da qual fazia a defesa. A empresa tinha em mãos um precatório de cerca de R$ 124 mil, mas só conseguiu no Tribunal de Justiça de São Paulo usar o título para compensar seus débitos tributários de R$ 116 mil. A decisão acabou por convalidar a compensação pelo artigo 78 da ADCT.
Na decisão, o juiz de Direito Ronaldo Frigini, da 1ª Vara da Fazenda Pública, anotou que “os créditos de natureza alimentar inserem-se na possibilidade de compensação com débitos fiscais”. Ele explica o porquê: há uma previsão, no artigo 100 da Constituição Federal, que o credor pode ceder, total ou parcialmente, seus créditos em precatórios a outra pessoas. Segundo ele, o dispositivo “não faz qualquer distinção sobre a qualidade deles (credor ou créditos), de modo a atingir toda a generalidade de pessoas (jurídicas ou físicas) que possuem ativos a receber do Poder Público”.
Em outra decisão do TJ-SP, o relator do desembargador Magalhães Coelho, da 3ª Câmara de Direito Público, disse que “sendo a norma constitucional dotada de autoaplicabilidade, é possível ao credor da parcela do precatório descumprida, ou seja, vencida e não paga, compensar com o tributo devido à entidade política devedora independentemente de autorização legal”.
Também da 3ª Câmara de Direito Público do TJ-SP, em decisão semelhante, o desembargador Angelo Malanga declarou que “infelizmente, é notória a postura da Fazenda Pública, que apesar de receber tratamento especial para o pagamento de seus débitos, com a possibilidade de perceber o pagamento em até dez anos, pretende esquivar-se da obrigação de pagamento e, ainda, inviabilizar a pretensão do contribuinte”.
ISSO É UMA VERGONHA ( Bóris Casoy )