Por Ribamar Bessa:
Quando tomar posse, em 2017, um vereador recém-eleito de Manaus (PTN, vixe, vixe) quer propor a construção no Encontro das Águas de um monumento a Ajuricaba com 30 metros de altura, algo similar à Estátua da Liberdade ou ao Cristo Redentor. Retoma assim antigo projeto de Amazonino Mendes no auge do delírio megalomaníaco do “terceiro ciclo de desenvolvimento”, uma fase vaga, imprecisa e eleitoreira da história do Amazonas que ninguém lembra mais. Diante dessa notícia que circula nas redes sociais, decidi atualizar crônica publicada em 1996, já que vinte anos depois o mesmo impasse persiste.
É que nenhum desenhista da época retratou Ajuricaba, o cacique dos Manáo morto pelas tropas portuguesas em 1727. Por isso, ninguém pode saber hoje que rosto ele tinha. Isso criou um dilema atroz que torturou a cúpula terceiro-ciclista e seus aliados: qual cara deve ter a estátua que será erguida no mirante do encontro das águas, cuja maquete já foi até encomendada pelo valor de 100.000 reais?
Nos arquivos, não existe qualquer ilustração, desenho ou gravura com o retrato do herói. O acervo iconográfico dos portugueses não possui uma estampa, uma figurinha, um simples santinho que reproduza sua fisionomia. Ele não teve sequer uma verônica para enxugar-lhe o suor do rosto com um pano, deixando lá gravada a imagem de sua face. O vereador do PTN vai ficar com a mesma dúvida atroz do arquiteto paranaense Angel Walter Bernal, idealizador da maquete:
– Que rosto eu dou para Ajuricaba?
Mister Cabocão
Na época, a pergunta deixou em polvorosa os puxa-sacos que jogavam dominó na residência do governador Amazonino Mendes. Todo mundo se ofereceu como modelo, imaginando os dividendos eleitorais que a imagem podia render. A coluna “Taquiprati” – não é a primeira vez – conseguiu burlar a segurança e colocou um gravador, que registrou para os leitores tudo o que se falou naquela noite.
– O Ajuricaba sou eu. Pode começar a tirar o molde de gesso – disse o secretário de Comunicação Ronaldo Tiradentes, oferecendo sua proverbial cara-de-pau. Ele garantiu que se fosse o escolhido, faria pessoalmente as instalações elétricas para iluminar o monumento, o que representaria enorme economia para o Estado, caso a Eletronorte não ouvisse os miados dos felinos enjaulados.
O deputado Átila Lins discordou. Para ele, o herói não pode ficar solitariamente no mirante. Precisa da companhia familiar: papai Ajuricabão, mamãe Ajuricabona, manos Ajuricabóides e sobrinhos Ajuricabinhas. Átila cedeu sua cara de lua cheia para representar Ajuricaba, solicitando pagamento de um cachê similar ao do tenor José Carreras para sua família figurar no monumento: mana Ceiça, mano Belão, sobrinhos, aderentes e xerimbabos.
– A melhor imagem da tribo Manáo – ele disse – é a Tribulins.
Houve reação generalizada contra as duas propostas. Alguém – no gravador não deu para identificar a voz – falou que o Alferes e o Átila tinham o physique du rôle.
– O Átila é muito gordo: a estátua aquática de um guerreiro barrigudo e, em consequência, peidão, não tem base histórica. Vai produzir borbulhinhas no encontro das águas. Os turistas vão debochar. Quanto ao Alferes Tiradentes, o único ponto em comum com o herói indígena é que ambos nunca sentaram nos bancos da escola secundária. Tiradentes é mineiro, com cabelo cacheado. Ajuricaba tem que ter cabelo liso, cara de amazonense, de caboco.
– Oba! É comigo mesmo – gritou o deputado Ézio Ferreira que, num concurso de “Mister Cabocão” obteria, sem sombra de dúvida, o primeiro lugar. Ézio segurou o espeto de churrasco como se fosse uma lança e posou declamando:
– Por Ajuricaba eu mato, por Ajuricaba eu morro!
Com uma calculadora, Ézio começou a fazer as contas do orçamento, incluindo os 20% de propina, tomando como referência o cachê pago a cantores contratados a peso de ouro por Amazonino. Depois, convidou todo mundo para uma tartarugada em sua mansão, onde a questão poderia ser discutida com mais tranquilidade.
– Negativo! Caboco por caboco, eu também o sou – contestou o deputado Lupércio Ramos, colocando o pronome no lugar certo pela primeira vez em sua vida. Mostrou uma gravura de 1785 da Expedição Alexandre Rodrigues Ferreira, onde aparece um índio Mura inalando paricá.
– É a minha cara – exclamou Lupércio, brandindo o documento histórico.
Branco e terno
Foi quando o “historiador terceiro-ciclista” Berinho Braga, o sempiterno secretário de cultura de qualquer governo, jogou um balde de água fria, esclarecendo que ambos – Lupércio e Ézio – tinham dentes de ouro, o que atrapalhava as pretensões de cada um, porque um índio do séc. XVIII não podia usar prótese.
Alfredo Nascimento – o cabo Pereira – até então calado, colocou ordem na confusão, exigindo:
– Precisamos definir o perfil do modelo que queremos para a estátua.
– Pardo e brabo – pontificou Berinho.
– Branco e terno! – gritou Amazonino.
Berinho, que sempre concorda com quem manda, corrigiu-se em cima do lance:
– Era exatamente o que eu estava querendo dizer. O modelo de Ajuricaba deve ser alguém branco, que mostre ternura em sua fisionomia.
Amazonino que acabava de bater a partida de dominó com a pedra “branco e terno”, ligou-se na conversa e sentenciou:
– Ajuricaba tem de ser alguém com cara de caboco e expressão de guerreiro, um amazônida de verdade.
– Guerreiro com cara de caboco! – assentiu Berinho. – Esse é o perfil que eu estava tentando desenhar.
– Então sou eu. Ajuricaba sou eu – reivindicou Pauderney Mandado, o homem da mala preta.
Berinho olhou Pauderney, olhou Amazonino, viu que os dois primos eram muito parecidos. No entanto, obedientemente concluiu:
– A discussão está encerrada. A estátua de Ajuricaba terá a cara amazônica, guerreira e viril de Sua Excelência, o governador Amazonino Mendes.
– Bzxxixxiibzxxxxxxxx
Ih, leitor (a)! Que azar! Descobriram o nosso gravador. Esse ruído que você acabou de ouvir é fruto de um misturador de vozes. A fita, a partir deste trecho, está incompreensível. É uma pena, porque outras pessoas se ofereceram como modelo: é possível imaginar os argumentos apresentados por Omar Aziz, Eduardo Braga, Euler Ribeiro e seus afilhados César Bonfim, José Melo Merenda e tantos outros.
Algumas perguntas finais: a estátua reproduzirá apenas o busto de Ajuricaba ou o corpo inteiro como o Arariboia em Niteroi? Se for o corpo inteiro, a nudez será inevitável. Suas “responsabilidades” serão mostradas como nas estátuas gregas? E o modelo, meu Deus, quem será o modelo?
Um monumento sempre significa outra coisa mais do que é. Tem um sentido alegórico. O que é que a estátua de Ajuricaba vai simbolizar? O que se quer dizer, através dela, para a população local e para os turistas? Uma última pergunta: quem vai construir o monumento aquático? Se o sambódromo, que foi erguido em terra firme e em solo consistente, desabou, o que acontecerá com um monumento aquático? Ajuricaba corre o risco de morrer afogado pela segunda vez.
– “É a última ideia beócia do Amazonino” – escreveu a jornalista Mônica Bérgamo na revista VEJA.
Última por enquanto. Que o diga o vereador do PTN.