Por Ribamar Bessa:
– Pinto porque a vida dói – disse um dia Iberê Camargo. Lembrei do artista plástico gaúcho agora, no momento em que completo mil textos publicados na mídia impressa. Este aqui é o milésimo. Por que escrever tanto? Talvez porque a vida dói e uma forma de tornar a dor suportável é manifestar tal sentimento, seja com pincel e tinta, seja com letra e palavras. Ou através da voz, do som, da música, do corpo.
Diante de pergunta similar feita em entrevista no canal de televisão France Culture, em 1990, o sociólogo Pierre Bourdieu respondeu:
– Escrevo, em primeiro lugar, porque isso me dá, psicologicamente, muito prazer. Além disso, porque fui um jovem rebelde e espero continuar sendo um velho rebelde. Essa foi a forma que encontrei de ser fiel à imagem que tenho de mim mesmo. Pode parecer narcisismo, mas é assim. O mundo social seria insuportável para mim, se eu não fosse capaz de me indignar.
Ele morreu rebelde, depois de sugerir que a gasolina que move a escrita, pelo menos a sua escrita, é o descontentamento, a necessidade de combater as injustiças do mundo. Quem escreve com essa perspectiva, cavalga as palavras da mesma forma que Dom Quixote encilhava o Rocinante, embora Carlos Drummond nos ensine que as palavras “são muitas, eu pouco” e que, por isso, sendo elas indomáveis, “lutar com palavras é luta mais vã”. O poeta, porém, relativiza o pessimismo, acrescentando: “entanto lutamos mal rompe a manhã”.
Outro tipo de motivação foi apresentada por Júlio Cortazar, eu acho, mas estou com preguiça de verificar no Google. Li em alguma parte que o escritor argentino ou outro profissional da palavra teria dito alguma coisa assim: “Escrevo para descobrir o que penso”, destacando que o ato de escrever o ajudava a organizar seu pensamento.
Existem motivações mais prosaicas, mas igualmente legítimas. Há quem escreva pensando com isso conquistar namoradas (os) ou ganhar uns trocados, outros ainda escrevem como quem dá aulas, com o furor pedagógico de compartilhar o que sabe, todos com a esperança de encontrar leitores com quem compartilhar as dores, as dúvidas ou as certezas.
Digno de nota
O primeiro texto que publiquei num jornal nasceu de uma dor, de uma raiva. Ficou fora da lista dos mil, porque não consegui localizá-lo. Foi em 1964 ou 1965, quando eu estudava o curso pedagógico, no Instituto de Educação do Amazonas. No IEA velho de guerra, fui aluno de excelentes professores como Orígenes Martins, Carlos Eduardo Gonçalves, Mercedes Ponce de León, Isis Falcone, José Braga, Garcitylzo do Lago, Dilma Montezuma e mais alguns poucos que nos transmitiram o prazer de dar aulas.
A diretora do IEA, em plena ditadura militar, era dona Neusa Ferreira, arbitrária, autoritária, vingativa, perseguidora. Acontece que o curso era noturno e houve um apagão geral na cidade. Dona Neusa, moralista, temia que as alunas fossem bulinadas. Por isso, ordenou a retirada dos alunos e fechou-se lá dentro com as alunas. Lá fora, uma multidão de marmanjos ficou à espera de namoradas, irmãs, vizinhas.A diretora gritava, ordenando que fôssemos embora. Aproveitamos a escuridão para vaiá-la e xingá-la. Ela chamou a polícia. O pau comeu na casa de Neusa.
Depois de muito sopapo e até de estudante preso, como a luz não voltava e a noite avançava, ela liberou o mulherio já quase de madrugada e eu, enfim, pude acompanhar minha irmã Dile de volta à casa, onde havia uma velha máquina de escrever. À luz de vela, escrevi um texto horroroso, que começava assim, com um chavão: “Fato digno de nota ocorreu na noite de hoje…”. De qualquer forma, consegui relatar o fato com relativa fidelidade, ridicularizando dona Neusa, o que mitigou a dor e a raiva.
Assinei embaixo do que escrevi e levei para o Diário da Tarde, da Empresa Archer Pinto. Lá fui recebido pelo jornalista Ulisses Paes de Azevedo, um sujeito pai d’égua, que não me conhecia. No dia seguinte, ele publicou “o fato digno de nota” sem mudar uma vírgula. Apenas omitiu meu nome, dizendo que preservava o anonimato “para proteger o autor da sanha ditatorial da diretora”. Todo mundo achou que o autor havia sido o Lauro Henrique Pinheiro, presidente do Gremio Estudantil Marciano Armond. Fiquei na minha, não reivindiquei a autoria.
Mil gols
Depois disso, já residindo no Rio, cursei jornalismo na UFRJ. No segundo ano, ainda estudante, fui contratado com salário inicial de repórter, pela ASAPRESS, uma agência de notícias arrendada pela Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o que me permitiu publicar matérias em jornais de vários estados do nordeste e do sul, sempre movido à indignação. Algumas estão na lista (www.taquiprati.com.br).
Depois vieram outros jornais no Rio de Janeiro, todos de oposição, onde assinei também algumas matérias: O SOL, PODER JOVEM, O PAIZ (assim com “z”), CORREIO DA MANHÃ e mais tarde fui correspondente em Paris do Opinião e, já em Manaus, fundador e redator chefe do Porantim – um jornal valente vinculado às lutas indígenas.
A maioria dos textos foram publicados mesmo em Manaus: na Crítica, onde nasceu o Taquiprati, no Jornal do Norte, de propriedade do Paulo Girardi, um jornal bonito e bem feito. Mas metade das crônicas foi publicada aqui, neste Diário do Amazonas, que é uma espécie de segunda casa, onde estou desde 2003 e onde sempre gozei de total liberdade para compartilhar com os leitores a indignação.
Um texto jornalístico, como regra geral, não tem a qualidade de um texto literário. Escrever para jornal é isso: um dia você é lido, no outro está embrulhando peixe. De qualquer forma, se Pelé, com tanta notoriedade, dedicou às criancinhas seu milésimo gol, por que um obscuro amazonense não pode dedicar sua milésima crônica aos raros leitores que embrulham seu peixe com o taquiprati? Afinal, quem lê, também lê porque a vida dói.
A teoria da recepção, surgida na Alemanha nos anos 1960, depois de pesquisar como é que um texto, seja ele literário ou jornalístico, é recebido por quem o lê, proclamou a soberania do leitor na recepção crítica de qualquer obra. Dessa forma, rompe com aquela noção do texto como algo fixo, imutável, engessado, unívoco, considerando a leitura como um processo de reconstrução do texto por parte do leitor. Quem escreve, constrói significados; quem lê, também constrói os seus. Neste caso, os mil textos apresentados no taquiprati podem ser considerados mil meu com mil teu, leitor (a). Confere?
De qualquer forma, já não iremos muito longe, não porque a vida tenha deixado de doer, mas porque chega uma hora em que o cansaço nos obriga a pendurar as chuteiras. Nas palavras de Drummond, “cerradas as portas, a luta prossegue nas ruas do sono”.