Na peça de William Shakespeare – Ricardo III –, o rei da Inglaterra estava se preparando para a maior batalha de sua vida. O monarca deixara rastro de crueldade no trato dispensado ao povo e por ter afrontado legítimos direitos familiares. Shakespeare descreve a derrota do soberano na batalha de Bosworth, vencida pelo conde de Richmond. Em dado momento, seu cavalo perdeu o equilíbrio e o rei foi jogado ao chão.
Antes que o rei pudesse agarrar de novo as rédeas, o cavalo, assustado, levantou-se e saiu em disparada. Ricardo III olhou em torno de si e viu seus homens dando meia volta e fugindo, enquanto os soldados de Henrique fechavam o cerco ao seu redor. Sentindo a irreversibilidade da situação, Ricardo III brandiu a espada no ar e gritou: – Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo! Tarde demais, a batalha estava perdida e o rei morto.
Por meio dessa frase, faço uma analogia com o quadro político nacional, em que se constata sem muita dificuldade grave déficit de lideranças autênticas, muito menos de estadistas. Um estadista ou homem de Estado, na definição de Houaiss, é pessoa versada nos princípios ou na arte de governar, ativamente envolvida em conduzir os negócios de um governo e em moldar a sua política; ou ainda pessoa que exerce liderança política com sabedoria e sem limitações partidárias.
De acordo com estudos postados na Wikipédia, a enciclopédia livre, para Santo Tomás de Aquino, as virtudes e os valores cristãos são inseparáveis da prática política, do buon governo e da figura do rex justus. A cosmovisão do governante inclui felicidade em Deus, homens bons e virtuosos, abnegação cristã (diversa da abnegação republicana), amizade honesta, unidade, paz e comunhão social. O governante pio e virtuoso inspira súditos igualmente pios e virtuosos, pelos quais é amado. A natureza é tomada como modelo para o governo dos homens e o governante tem o papel ordenador análogo ao de Deus.[1]
Segundo Maquiavel, “a condução do Estado é considerada uma arte, e o estadista, um autêntico artista”. Diversos pensadotres defendem que “o estadista é adaptável às circunstâncias, harmonizando o próprio comportamento à exigência dos tempos”. Por outro lado, “sua virtù é a flexibilidade moral, a disposição de fazer o que for necessário para alcançar e perenizar a glória cívica e a grandeza – quer haja boas ou más ações envolvidas – contagiando os cidadãos com essa mesma disposição”.
No ensaio Mirabeau o el político, de 1927, Ortega y Gasset (1883-1955), filósofo, ensaista, jornalista e ativista espanhol, classifica os governantes em três categorias: estadistas, escrupulosos e pusilânimes. O homem de Estado deve ter o que chama de “virtudes magnânimas” e não as “pusilânimes”. Honoré de Mirabeau é tomado como arquétipo do político. Ortega, porém, alerta que um arquétipo (aquilo que é) não se confunde com um ideal (aquilo que deve ser). Isto porque a confusão entre arquétipo e ideal levaria a pensar que o político, além de bom estadista, deva ser virtuoso, o que, para o autor, seria um equívoco.
Normalmente ocorre de o estadista ser incompreendido. Ao preocupar-se com o longo prazo, toma decisões impopulares no curto prazo, enquanto a maioria dos políticos preocupa-se com resultados imediatos de suas ações. Oretga y Gasset detalha o raciocínio: “o indivíduo com uma missão criadora (o magnânimo) é radicalmente diverso do indivíduo sem missão alguma (pusilânime). Virtudes convencionais (honradez, veracidade, escrúpulos) não são típicas do político, que costuma ser propenso a certos vícios – desfaçatez, hipocrisia, venalidade”.
Em síntese, para Ortega y Gasset, enquanto “o estadista se preocupa com a próxima geração, o político com a próxima eleição”.
Refiro-me a estadistas evocando figuras históricas e líderes do porte de um Churchill, Roosevelt, DeGaulle, John Kennedy, o jovem presidente norte-americano assassinado em 1963, que se notabilizou pelo porte, a coragem, métodos e visão políticos inovadores.
Kennedy estabeleceu os níveis de responsabilidades do cidadão para com a nação ao pronunciar, no discurso de sua posse como o 35º. Presidente dos Estados Unidos, em 20 de janeiro de 1961, então com apenas 46 anos de idade, a seguinte frase: “Ask not what your country can do for YOU, but what YOU can do for your country”! Uma evocação da mais absoluta contundência e significância histórico-política.
“Não pergunte o que seu país pode fazer por VOCÊ, mas o que VOCÊ pode fazer pelo seu país”. A frase notabilizou o jovem Kennedy, que logo se tornaria um dos mais notáveis e carismáticos estadistas do século XX.
No Brasil
No Brasil o quadro é de escassez absoluta. É evidente nossa pobreza de estadistas, embora o país, ao longo de sua história sempre se distinguiu nesse campo internacionalmente. Recordando: o estadista, segundo o mestre Aurélio Buarque, é um homem de notável atuação e conhecimentos nos negócios e na administração de um País; doutores, peritos e executivos nas questões alusivas às ciências políticas e sociais.
Seguramente nossos mais importantes estadistas foram Rui Barbosa (1849-1923), o Águia de Haia, que se distinguiu como ministro da Fazenda procedendo importante reforma financeira no País, e José Maria da Silva Paranhos Júnior (1845-1912), o Barão do Rio Branco, imbatível no campo diplomático sobrepujando ingleses, franceses, holandeses e argentinos com infinita e incomparável argúcia.
Voltando-se ao passado longínquo, podemos destacar, dentre os notáveis brasileiros: Floriano Peixoto (1839-1895), o “Marechal do Ferro”, dotado de grande coragem e determinação no combate a colonizadores e invasores estrangeiros; Prudente de Morais, muito prudente e abastado cafeicultor, além de Campos Sales (1841-1913), negociador da dívida externa brasileira com os Rothschild., época em que o Brasil já fazia maus negócios junto à banca estrangeira.
Não se pode deixar de considerar, em períodos sucessivos, Getúlio Vargas (1892-19540, o ditador do Estado Novo (1930-1945), quando, por 15 anos, de forma contínua, governou o Brasil durante as chamadas Segunda República e Terceira República. Nesse período implantou a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), a Legião Brasileira de Assistência e empreendeu a marcha rumo ao Oeste de ocupação dos vazios demográficos no Setentrião brasileiro. Destacou-se também por suas ideias nacionalistas. Destas, brotou outra extraordinária obra, a criação da Petrobras em 1952, durante seu segundo governo para o qual fora eleito em 1950.
Outro grande brasileiro, Eurico Dutra, militar brioso dotado de grande dignidade, um presidente muito respeitado, cognominado o “catedrático do silêncio”. Juscelino foi considerado um estadista brilhante, despojado, corajoso e realizador. Depois de Brasília, e da implantação da indústria automobilística, o Brasil tornou-se outro país. Era preciso ousar, e JK ousou ao anunciar seu programa de governo (o histórico Plano de Metas) – 50 anos de progresso em 5 anos de realizações, com pleno respeito às instituições democráticas.
Na era militar (1964-1985), pode-se destacar Humberto de Alencar Castello Branco, um homem probo, dotado de grande sensibilidade política. Castelo Branco durante seu governo (1964-1966) deixou para a Amazônia grandes obras de infraestrutura, de comunicações e na área educacional. Além do mais criou a SUDAM, a SUFRAMA e reestruturou o Banco da Amazônia (BASA), como banco de desenvolvimento regional.
Fernando Henrique Cardoso herdou o Plano Real, que elaborara e implantara como ministro da Fazenda do governo Itamar Franco em 1994. O plano de estabilização da economia que pôs fim a uma inflação galopante de 2.477,15% contabilizada em 1993 e promoveu importantes reformas, o programa de privatizações, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a reestruturação do sistema bancário nacional (REFIS).
Safra de estadistas, contudo, parou por aí. Nos anos 2000 correntes nenhum nome com características plenas da figura de estadista se destacou na chefia do Executivo e mesmo no Congresso Nacional.
O país continua órfão de líderes e estadistas. Grave, gravíssimo, pelo que a sociedade paga um preço dos mais elevados. Não há, por conseguinte, quadros para acudir ao brado de Ricardo III – meu reino por um cavalo! -, que se perde inócuo no Brasil. Sem cavalos nem estadistas, nosso “reino” claudica, tropeça aqui e acolá sem encontrar um norte seguro.
Normalmente refém de governantes desprovidos de visão de longo prazo, políticos não raro prepotentes, demagogos, populistas e intolerantes. Muitos deles corruptos, não conseguem sair do círculo vicioso limitado a suas comezinhas ambições eleitoreiras e ascender ao status de “estadista” comprometido com as próximas gerações. Tão vital para a condução politica da nação quanto o ar que respiramos ou a água que bebemos.