(*) LUIZ FUX
A opinião pública, elemento importante de legitimação democrática das decisões judiciais, vem se insurgindo com extrema justiça contra as mazelas do Poder Judiciário.
É mister, que reste claro para o povo, representado pelos poderes da República, que é do interesse da própria instituição a apuração das disfunções, surjam de onde surgirem.
Essa questão atual não se confunde com a técnica de julgamento da Suprema Corte.
O tema gravita em torno dos valores inerentes aos juízes conquanto seres humanos; vale dizer: a paixão e a razão.
Séculos atrás o universo jurídico viu-se invadido pela escola do direito livre, tendo como um de seus precursores Kantorwicz.
Carlos Maximiliano, o filósofo da hermenêutica, anotou na sua memorável obra com mais de 2 dezenas de edições que essa escola do pensamento jurídico deixava-se tomar pela paixão, desconsiderando a razão jurídica e as leis e, por isso, percorreu a Europa como um meteoro, trajeto rápido sem deixar vestígios, agradando, apenas, aos teóricos do anarquismo.
Jhering, por seu turno, advertia que o fim do direito era a paz, mas o meio de obtê-la era a luta.
O epílogo secular dessa luta consagrou o banimento da autodefesa individual e social e o monopólio da justiça como guardiã do direito posto, evitando, assim, a vitória do forte sobre o fraco, fazendo prevalecer o melhor direito.
Incumbido dessa tarefa pelos representantes do povo compete ao Poder Judiciário tornar realidade os direitos consagrados, além de para esse fim submeter-se à constituição e às leis.
É cediço que sem o respeito de todos pelo direito posto, não há ordem e não há paz social.
Essas elementares percepções denotam a necessidade de esclarecimentos ao povo sobre questões atuais sobre como deve atuar a Suprema Corte.
A questão central é saber: por que a Corte Suprema não pode decidir sempre conforme a opinião pública? Por que agem os juízes no espaço aparentemente reservado ao Legislativo?
A opinião pública é variável e apaixonada e, no âmbito jurídico, deve prevalecer a contenção do magistrado, tal como na visão lúdica enunciada por Calamandrei: o cidadão decide com a paixão ao passo que ao juiz incumbe fazer prevalecer a razão jurídica.
Historicamente, paixões passageiras serviram às barbáries, e os juízes que se encantaram com esse sentimento efêmero foram julgados em Nuremberg.
É evidente que sempre que possível a Suprema Corte deve legitimar-se democraticamente por meio de decisões que mereçam o apoio popular, como por exemplo ocorreu recentemente com o reconhecimento da união homoafetiva, com a liberdade de expressão da imprensa e do povo, este na marcha pela descriminalização do uso da maconha.
Entretanto, nem sempre é assim.
Um país que respeita a sua Constituição rígida não pode submetê-la às interpretações apaixonadas e momentâneas, sob pena de mutilá-la ao sabor do populismo judicial, que é mais pernicioso do que o populismo político.
O Supremo Tribunal Federal é guardião dos direitos fundamentais contemplados na Constituição, ainda que contra os avanços da maioria, por isso que nessa luta entre o Constitucionalismo de direito e o Constitucionalismo popular o tribunal deve ser necessariamente contramajoritário.
A voz racional do povo está na sacralidade da Constituição lavrada por um poder originário eleito pela sociedade e sob a inspiração de Deus; como enuncia a Carta Maior.
A voz apaixonada reside no dia a dia, a qual, pela sua própria instabilidade, recomenda reflexão.
O denominado ativismo judicial, vale dizer a atuação do Judiciário no espaço reservado ao Legislativo, decorre não só da omissão em legislar sobre determinado tema mas também da provocação do Judiciário para manifestar-se e, por força da mesma, tem o dever de fazê-lo.
Os juízes não podem agir sem que sejam solicitados. É princípio elementar de direito.
Quem quer que se dedique à história das Cortes Supremas há de verificar que há denominadas eras, como por exemplo, a “era Warren” da Suprema Corte Americana, na qual esta plasmava decisões nos espaços vazios de regulação dos direitos fundamentais, legados ao relento pelo Legislativo.
Os momentos denominados do ativismo judicial são marcados exatamente pela defesa das liberdades, entre as quais a liberdade de imprensa, a igualdade dos homens bem como outras garantias pétreas arrancadas entre lutas e barricadas contra o nazi-facismo.
Essas revisões da história conduzem-nos a concluir que mercê de devermos sempre estar atentos à higidez moral da instituição, o pretenso constitucionalismo popular corre o severo risco de encantar momentaneamente; passar pela história como um meteoro da paixão sem deixar vestígios, senão o único: o de criar a escola do “direito passional”, em nome do qual se morre e se mata, mesmo sem razão.
Transcrito de O GLOBO de hoje.
(*) LUIZ FUX é ministro do Supremo Tribunal Federal.