“Sei em quem não quero votar, mas não vejo na urna eletrônica o nome daquele em quem quero votar. Impotente, me pergunto: o que fazer?” (Dermilson Paixão, o Farofa, 2020).
De que maneira a morte do Maradona, que comoveu o planeta, inspirou esta crônica sobre o voto nulo? Foi assim. A coluna deste domingo (29) era sobre o craque argentino e já havia sido iniciada quando, de repente, um anagrama nos levou a Dona Mara, moradora do beco da Escola. Uma ideia puxa outra. Dona Mara, já falecida, nos fez lembrar seu sobrinho Dermilson Paixão, o Farofa, que vota na gloriosa 41ª Seção da 2ª Zona Eleitoral do Grupo Escolar Cônego Azevedo, bairro de Aparecida, em Manaus. Foi este passo dado em um beco estreito que nos fez mudar de rumo.
Ínvios são os caminhos do Senhor – como sabe muito bem o bispo Marcelo Crivella, o que exige explicação prévia. Embora a filosofia não seja bem minha praia, é sempre de bom tom citar um filósofo qualquer para justificar mudança tão brusca e inopinada. Por isso, me ancoro no pensador escocês do séc. XVIII, David Hume, autor do Tratado da Natureza Humana, cujos trechos li há tempos para complementar uma aula. Confesso que sua leitura deu um nó na minha cachola, ficou apenas vaga lembrança da relação da linguagem com a ‘conexão de ideias’.
O pensamento não tem limites e nem aceita grilhões que o aprisionem. Emoções despertadas por um tema pulam para outro com o qual não possuem aparente afinidade – escreve Hume ou pelo menos foi isso que entendi. Dizem as más línguas que uma única célula nervosa realiza mais de mil sinapses. Suspeito que foi nesse espaço sináptico que Maradona, Dona Mara, Farofa e o voto nulo se cruzaram.
O Farofa
Após essa digressão quase convincente que pode impressionar eventuais leitores incautos, resta-nos abordar o voto nulo, indagando: em quem votarão os Farofas que escolherão no segundo turno prefeitos de 57 cidades brasileiras, das quais 18 são capitais?
Dermilson Farofa, 73 anos, bem que gostaria de votar em São Paulo, Belém, Porto Alegre, Recife, Vitória ou Juiz de Fora, onde candidatos com forte preocupação social querem transformar e melhorar a cidade. Mas o seu título eleitoral é de Manaus. Lá e no Rio de Janeiro, eleitores hesitantes manifestam tendência para anular o voto. Dermilson me telefonou para expor seu drama, falando como se tivesse a boca cheia de farofa, daí o apelido. Ele tinha apenas 15 anos, quando presenciou Zeca Pinto e Severino Pão Duro, cabo eleitoral de Paulo Nery (UDN), se engalfinharem, saindo na porrada por divergências sobre o voto nulo. Vem daí o trauma.
Agora, nas redes sociais, Dermilson Farofa é metralhado com velhos argumentos de 1962 similares aos do jornal O Trabalhista de Plinio Coelho (PTB), o governador então eleito. Empanzinados de furor cívico e de terrorismo sufragista, os “espertinhos” advertem: “Se você votar nulo, quem se anula é você, depois não pode reclamar pela omissão”. O farfalhudo ministro Marco Aurélio Mello, do STF, com voz pomposa e esnobe, repete a ladainha: “o voto nulo é um erro, é o avestruz que enfia a cabeça no buraco durante a tempestade”. Outros concordam, garantindo que tal conduta não tem qualquer impacto sobre o sistema. Será?
O pobre Farofa está sendo acusado, nem sempre de forma civilizada, de ser “negativista”, de lavar as mãos ao abdicar do direito de decidir. Incomodado, ele quer sabe o que penso, logo eu que decididamente não sou a pessoa mais indicada, considerando minha história de erros sucessivos na militância política.
Não sei bem o que dizer, mas não me omito de dar uma força ao meu amigo de infância. Digo-lhe que, ao contrário do que apregoam tais arautos “positivistas”, o voto nulo nem sempre significa omissão. Em determinado contexto, pode ser uma ação afirmativa, positiva, uma tomada de posição diante da falta de opção.
Supunhetemos
Lembrei ao Farofa uma conversa, em 1998, com meu amigo Miguel Baldez, ex-procurador do Estado do Rio. No segundo turno, sobraram Garotinho e Cesar Maia. Decidi votar naquele que considerava o “menos pior”, enquanto Baldez pregava o voto nulo. Eleito, Garotinho começou uma série de desmandos, com a justificativa de que havia recebido uma enxurrada de votos (incluindo o meu), que o haviam fortalecido e legitimado. Menos de um ano depois, encontrei o aguerrido Baldez nos corredores da Uerj e, arrependido, lhe pedi desculpas, dizendo que a razão estava com ele. Ambos candidatos se equivaliam.
O voto nulo – dizia Baldez, autor de artigos sobre o direito insurgente – pode ser a voz dos descontentes com o sistema, tentando se mobilizar, num processo para deslegitimar os dois candidatos. Não é um ato de indignação individual, mas uma manifestação coletiva. É um ato consciente de inconformismo, de insurgência, de rebeldia, anunciando que outra política é possível.
O que queremos dizer com o voto nulo? Supunhetemos que, numa avaliação política, nenhum dos dois candidatos presta para dirigir a cidade, que ambos não têm qualquer compromisso com a democracia, com os direitos humanos, com a justiça social, não formularam propostas viáveis para enfrentar os problemas que afligem a população urbana e têm a ficha suja. Cabe, então, o voto nulo, o direito a nos insurgirmos contra uma situação de opressão.
Votar nulo não é anular o meu direito de participar, ao contrário, participo manifestando o meu profundo descontentamento com um sistema que permite colocar num segundo turno – imaginemos – Donald Trump e Jair Bolsonaro. Quem você escolheria nesse caso? Seis ou meia dúzia? Dizer que não queremos nenhum dos dois biltres não é se anular. É julgar que nulos são eles.
Vixe vixe
O Farofa, eleitor na capital amazonense, onde está enterrado meu cordão umbilical, vai votar nulo, apesar do “terrorismo sufragista” das redes sociais que o acusa de “omisso” e pretende calá-lo, assegurando que, por “lavar as mãos”, ele não pode reclamar depois. Mas é justamente o contrário, quem não pode reclamar do Garotinho sou eu que votei nele. Até que posso, mas sem a força do Baldez, que votou nulo.
No Amazonas, entre Amazonino Mendes (Phodemos, vixe vixe) e David Almeida (Avante, vixe vixe), a escolha é entre o Capiroto e o Capeta. Neste caso o voto nulo, se for massivo, manda um recado: “Seus votos foram inexpressivos, você não tem o nosso apoio, estamos de olho em ti”. O direito de votar implica o direito de vetar.
E no Rio? O que fazer entre Eduardo Paes (DEMo vixe vixe) e o satanás Marcelo Crivella (Republicanos vixe deusmelivre)? Acompanhei debate saudável nas redes sociais entre alguns colegas da Uerj, com sólidos argumentos dos dois lados.
Lígia Aquino vai tapar o nariz e votar contra o Estado Teocrático, contra o conservadorismo tacanho e burro, a LGBTfobia, a máquina de fake news, o falso profeta, a incompetência administrativa, o pseudo moralismo. Ana Mignot concorda por achar que é a hora de varrer do mapa da política esses bispos metidos a ungidos de Deus. Já José Carlos Lima de Souza vota nulo, mas afirma que apesar das divergências, temos uma certeza: estaremos todos juntos no terceiro turno que começa no dia 30 de novembro de 2020.
Assisti o debate televisivo nesta sexta-feira (27) e admito que o bispo bolsonarista, aliado da familícia, com seu discurso escabroso, quase me convence a votar, por exclusão, no seu opositor, o que certamente faria se estivessem empatados. Como não é o caso, da mesma forma que muitos eleitores cariocas, opto por votar no saudoso Macaco Tião.
P.S. – Ao genial Maradona e à Dona Mara, nossos agradecimentos por nos conduzir até o Farofa, que não me deixa mentir. Ou deixa?