Adeus Manaus, está chegando a hora da partida. Adeus, Manaus,
o nosso adeus será por toda a vida”. (Waldick Soriano, 1963)
Entre um e outro gole de cachaça na taberna do Jaime Mãozinha, na praça Bandeira Branca, Pedro Eloy costumava narrar às terças-feiras, dia de novena, as atrocidades que viveu na Itália durante a 2ª Guerra Mundial. O distinto público do bairro revivia os combates na neve, as granadas arremessadas por alemães, os gritos de dor, os corpos voando pelos ares com a explosão de minas terrestres, os bombardeios, os cadáveres enterrados nas trincheiras cavadas no chão, a fome, o frio, a solidão. Incorporado ao 6º Regimento de Infantaria, ele foi um dos 25.445 expedicionários brasileiros, muitos mortos em combate, outros feridos e mutilados para sempre.
Pedro Eloy sobreviveu para contar os horrores da guerra a bêbados e jovens curiosos do bairro de Aparecida. A memória é traiçoeira, mas lembro um dia quando o ex-pracinha, já cheio da troaca, pranteava a morte de um soldado em seus braços, enquanto na vitrola da taberna Waldick Soriano gemia o seu “Adeus Manaus”, levando João Bitoito a um choro copioso. De outra feita, descreveu o “frio feladapota” de 20 graus negativos na tomada de Monte Castelo, um relato tão vivo que o Guilherme Porca Vadia, filho da dona Quinu, ali na escuta, tremia de frio em pleno calor amazônico, um bom pretexto para aquecer a alma com mais uma dose de cachaça.
O Dia D
A narrativa terminava invariavelmente com o final da guerra, em novembro de 1945, e o retorno de centenas de sobreviventes da Força Expedicionária Brasileira (FEB), residentes em Manaus, que desembarcaram do navio Cambridge no Porto do Rodo, ovacionados por uma multidão debaixo de um intenso foguetório. Marcharam até a igreja matriz, rezaram pelos 30 amazonenses mortos na tomada de Monte Castelo e de lá, subiram a av. Eduardo Ribeiro, entraram na José Clemente e ocuparam o estádio General Osório, em frente ao 27º BC, onde foi celebrada uma missa campal.
– Ninguém lembra mais disso – se queixava o ex-pracinha, exibindo para um público embasbacado duas ou três fotos tomadas em lugares de nomes estranhos como Montese, Castelnuovo di Vergato, Della Torraccia. As fotos amareladas pelo tempo ilustravam a aula viva daquela história banida das salas de aula e do currículo, mas repetida numa taberna, onde o narrador se calibrava bebendo cachaça. Ele reclamava do Exército, que o abandonou, sem direito à aposentadoria sob a alegação de que não sofrera perdas físicas. No meio da narrativa, levantava a perna esquerda da calça para mostrar a cicatriz de um ferimento causado por estilhaço de granada.
Já depois do golpe militar, Pedro Eloy tentou uma reparação, escrevendo uma carta a seu conterrâneo, o general Siseno Sarmento, ex-comandante do Regimento Sampaio de Infantaria da FEB. Mas o general amazonense nem respondeu, envolvido que estava na criação do DOI-CODI responsável pela tortura dos opositores ao regime ditatorial.
Desiludido, Pedro Eloy, figura doce e brincalhona, encontrou refúgio no álcool, ingerido diariamente ao lado do pai, seu companheiro de copo e de cruz. Os dois gostavam de crianças, mas viviam sozinhos, sem filhos, sem mulher. À tardinha, ambos saiam dos bares e entravam cambaleantes no Beco da Indústria, onde moravam. Morreram de cirrose. Na época, não podiam imaginar Manaus transformada numa praça de guerra, com pacientes deitados no chão de hospitais lotados à espera de um leito, morrendo asfixiados por falta de oxigênio como ocorre agora.
Praça de guerra
Eis o que eu queria dizer. A 2ª Guerra Mundial causou menos danos ao Amazonas do que a “gripezinha” anunciada pelo capitão banido do Exército, cujo ministro da Saúde é um subserviente general da ativa, que confessou não saber o que era o SUS. A atual tragédia amazonense, que ceifa centenas de vidas, ganhou as primeiras páginas dos jornais do mundo inteiro.
“A situação é trágica. É uma oportunidade para pensar se hoje somos o Brasil de amanhã. As origens dessa tragédia têm nomes e sobrenomes. Têm culpados, têm responsabilidades: Pazzuello, o presidente Bolsonaro e seus quatro valetes” – disse numa entrevista a Tutaméia TV o físico Ennio Candotti, diretor do Museu da Amazônia (MUSA) e presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência:
– A batalha de Manaus é decisiva. Dependerá da nossa capacidade de mobilização para dizer: O Brasil é Manaus! Vamos defender oxigênio para todos. E, com isso, chegar às últimas consequências, no Congresso Nacional, no STF, nas instituições que possam nos ajudar a evitar o colapso mais amplo. Enquanto esse grupo não for retirado das posições de poder vai continuar e vai se espalhar. Isso é o que deve ficar claro com o exemplo de Manaus. Não imaginem que Manaus ficará em Manaus”.
Candotti defende que um júri popular julgue o ministro Pazzuello e sua equipe pelos desastres que cometeram e que incrimine também o presidente da República. Para o diretor do MUSA, a mortandade em Manaus, acentuada pela carência de oxigênio nos hospitais, reflete a necropolítica implementada no país que, aliada à incompetência, é responsável por quase 210 mil mortes no Brasil e por 8.390.341 casos confirmados.
Segundo Candotti, o impeachment é uma medida muito suave. Não basta. “Deveria ser uma criminalização pura e simples. Há crimes em jogo. É preciso um tribunal de guerra. É preciso que um júri popular condene, como estão querendo fazer com o Trump”.
Necropolítica
Pressionado pelos gritos de protesto, a FAB começou a levar doentes para outros estados. No entanto, a aeronave com maior capacidade de carga em serviço, podendo transportar até 26 toneladas, saiu de cena para participar na terça (12) de um treinamento militar nos Estados Unidos, onde ficará até 5 de fevereiro.
Outra medida de necropolítica ocorreu na noite de natal, (24/12/2020) quando, em plena pandemia, a Câmara de Comércio Exterior (Camex) acabou com a isenção de bens usados em hospitais e taxou em 14% a importação de cilindros de ferro e em 16% os de alumínio, tornando a importação dos recipientes para gases medicinais mais caros. Diante do escândalo com repercussão internacional, Bolsonaro voltou atrás e o imposto foi reduzido a zero nessa sexta (15).
Como parte dessa necropolítica, o governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC vixe vixe), indiciado por corrupção, desativou entre julho e outubro 85% dos leitos de UTI para Covid-19.
– “Estamos sob bombardeios. Não temos armas para nos defender. Está acontecendo algo que temos que contar a todos de modo que em outros centros se prepare uma resistência um pouco mais articulada” – declarou Ennio Candotti.
Como se não bastasse, para completar o quadro, um grupo privado ligado a políticos locais decidiu instalar uma funerária dentro do Condomínio Jardim Espanha II. A Prefeitura licenciou a obra, contrariando a regulamentação da ANVISA que exige a distância de 5 quilômetros de áreas residenciais, o que pode gerar até uma CPI na Cãmara Municipal. Os trabalhos já iniciaram para o pânico dos moradores e das três escolas ali sediadas, que exigem o cumprimento da lei e a fiscalização dos órgãos públicos com a suspensão do andamento da obra. Com o aumento da demanda, o mercado da morte é hoje o mais rentável dos negócios. A Funerária sabe que com o andar da carruagem sua clientela vai aumentar enormente. Pão Molhado, correspondente do Taquiprati no front de batalha, está investigando os nomes dos envolvidos para darmos informações mais precisas que serão abordadas em próxima coluna.
Manaus está asfixiada sem poder respirar. O grito de George Floyd ecoa pelos rios do Amazonas: “I can’t breathe”. Todos nós, amazonenses, já perdemos familiares, amigos, ex-alunos, colegas, entes queridos, conduzindo à outra leitura da música de Waldick Soriano: “Quem é que não chora na hora da partida?”. Ennio Candotti tem razão: é hora de reagir.
OBS: Duas charges de Mario Adolpho e uma de Genildo.
P.S. Jorgemar Monteiro e Ênio Savacho: “O Amazonas na Segunda Guerra Mundial”. Embora não tenha lido ainda por não ter tido acesso, recomendamos o livro desses dois historiadores que pesquisaram durante seis anos as notícias publicadas em jornais e revistas. Sobre a Força Expedicionária Brasileira vale a pena consultar as crônicas escritas por Rubem Braga e Joel Silveira, correspondentes dos jornais brasileiros na Itália, que acompanharam os pracinhas.