Segundo Gabriel Garcia Marques, em sua autobiografia “Viver para Contar”, de 2003, “a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”. Para o sociólogo, historiador e antropólogo Gilberto Freyre, em “De Menino a Homem”, de 2010, “encontra-se, exatamente na maneira de contar, o fértil poço de invenções e reinvenções que oferta ao texto uma identidade pensada e repensada. De que serviria uma narrativa desprovida da imaginação, absolutamente seca, adstrita à rigorosa objetividade?” A lembrança, segundo Freyre, “tem a virtude de ressignificar o fato sem deixá-lo dissolver em matéria arrogantemente erigida em blocos de concreto armado, dura, hirta, congelada”. Na oportunidade da celebração de mais um aniversário de Manaus, de número 351, quem começa a contar como tudo começou é o escritor e historiador Gaitano Antonaccio, em seu livro “Amazonas – a outra parte da história”, de 2001. Como relata, “a primeira tentativa de se fundar um povoado no Amazonas começou no dia 22 de junho de 1657, quando alguns padres jesuítas portugueses chegaram do Maranhão, tomaram posse da região do Tarumã, ergueram uma cruz e rezaram uma missa no lugar”. Com a expulsão dos jesuítas pelos índios, outras tentativas ocorreram até 1669, quando a história de Manaus efetivamente tem início com a fundação do Forte de São José da Barra.
De acordo com o historiador, a Fortaleza foi construída para assegurar o domínio da coroa de Portugal na região, área da confluência do rio Negro com o Amazonas e o Solimões, e controlar o portão de entrada dos confins ocidentais da Amazônia, reservados à Espanha pelo Tratado de Tordesilhas, de 1494. O povoado recebeu o nome de São José da Barra do Rio Negro (Lugar da Barra) e em 1832, sob a denominação de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro, o povoado foi elevado à categoria de vila.
Anteriormente, em 1848, a Vila da Barra fora elevada à categoria de cidade, com o nome de Cidade da Barra do Rio Negro, para receber em 1856 o nome de Manáos, em homenagem à nação indígena dos Manaós (Mãe dos Deuses), considerada o mais importante grupo étnico habitante da região, reconhecido historicamente pela sua coragem e valentia, ao que sustentam importantes documentos e livros sobre a história do Amazonas.
O período áureo da borracha: apogeu e declínio
A capital do estado do Amazonas prosperou desde então, impulsionada, especialmente, pelo ciclo áureo da borracha, período compreendido entre a metade do século XIX e a segunda década do século XX. A chamada goma elástica tornara-se matéria-prima estratégica a partir da Revolução Industrial, desencadeada na Inglaterra nos séculos XVIII e XIX, cuja principal particularidade foi a substituição do trabalho artesanal pelo mecânico, permitindo o uso da borracha em larga escala por diversas cadeias produtivas, a principal delas a automobilística.
A supremacia do mercado pelo produto amazônico, contudo, teve vida curta, aproximadamente de 1860 a 1912. Os altos preços ditados pelo Brasil, na condição de líder do mercado oligopolístico da borracha, levaram ao colapso da produção e o fim da hegemonia dos seringais nativos da Amazônia em relação aos mercados mundiais. O golpe fatal foi desferido quando do início da produção do Sudeste asiático a partir de sementes de seringueiras – Hevea brasiliensis – cultivadas nos Kew Gardens, de Londres, e posteriormente levadas a plantio definitivo na Malásia, que se torna o principal polo produtor a partir de 1912.
Daí em diante, até 1967, quando da instalação da Zona Franca de Manaus, o Amazonas -e toda a Amazônia – mergulha em profundo estado letárgico que se ampara inteiramente na economia do extrativismo, caracterizada pela produção e exportações de couros e peles de animais selvagens, óleos essenciais (copaíba, andiroba, pau rosa), extração de madeiras, coleta e beneficiamento de castanha do Brasil, sorva, balata e uma produção marginal média de 4 mil toneladas de borracha, contra 50 mil toneladas no período áureo.
Ajuricaba, um herói amazonense
Em momento não tão edificante da história brasileira e do nosso estado, em particular, cumpre registrar que, sim, já tivemos herói, Ajuricaba, líder da facção dos índios Manaus, que habitavam a região. Relato da historiadora Etelvina Garcia em seu refinado e valioso livro “O Amazonas em três momentos – Colônia, Império, República”, de 2010, resgata o papel desse povo na luta contra a dominação imperialista portuguesa. Tornando-se independente de seu pai, o tuxaua Huiuiebeue, aliado da Coroa, Ajuricaba, apoiado por intrépido grupo de guerreiros, “decidiu enfrentar o inimigo, comandando o levante que passaria à história como símbolo da resistência dos índios do Alto Rio Negro à opressão do colonizador”.
Por volta de 1723, as tropas de Ajuricaba, segundo Garcia, “barraram a entrada dos portugueses, atacando as tropas de resgates que subiam as cachoeiras”. Adotando autênticas guerras de guerrilha, endurecendo ao extremo a resistência, “declararam-se inimigos dos índios que se aliavam ao colonizador e fizeram guerra impiedosa contra eles – assaltando e incendiando suas aldeias, escravizando-os, matando-os”.
A chamada “guerra justa” alcançou o ápice naquele mesmo ano, obrigando as autoridades portuguesas a reforçar suas tropas, que recebiam ordens expressas de Portugal “para exterminar os índios inimigos”. De acordo com a obra citada de Etelvina Garcia, o choque foi violento. Desta forma, “atacado pela retaguarda, Ajuricaba foi preso com outros seis líderes e cerca de dois mil índios. Ele e alguns de seus companheiros foram postos a ferros e embarcados rumo a Belém”. Lenda, narrativa fantasiosa em composição com história dá conta de que Ajuricaba, mesmo acorrentado, em rápido movimento, joga-se no meio do Rio Negro, preferindo a morte à escravidão portuguesa.
Os feitos heróicos de Ajuricaba e seus comandados repetiram os movimentos de resistência à colonização espanhola no século XVI, e norte-americana, no século XIX. Desse período sobressaem-se figuras lendárias do porte de um Túpac Amaru, conhecido por resistir ao início da dominação espanhola na América; o Sapa Inca, Atahualpa, o imperador asteca Montezuma; Gerônimo e Cochise, nos Estados Unidos. De acordo com Darcy Ribeiro, o padrão de organização social desses impérios assemelham-se aos formados há mais ou menos dois mil anos na região Mesopotâmia ou às civilizações que se desenvolveram na Índia e China mil anos depois e às civilizações Maias e Astecas na Mesoamérica. Patrimônio étnico, social, antropológico, cultural e econômico que as forças espanholas impiedosamente dizimaram.
Memória histórica menosprezada
Cidades, ao redor do mundo, prestam prodigamente tributos a suas origens históricas, aos antecessores e desbravadores que, vencendo toda sorte de intempéries doaram-se à construção do ideal de fundar e fixar a marca civilizatória no concelho (com “c” mesmo) ou na freguesia. Exceto Manaus. Constrangedor verificar a não existência na cidade de um monumento dedicado às três principais figuras que construíram nossa história: o madeireiro, o pescador e o seringueiro. Ou aos povos indígenas, nossos ancestrais habitantes da Terra de Santa Cruz.
Embaraçoso, por outro lado, constatar o “esquecimento” do amazonense de perpetuar a memória em logradouros públicos do grande governador Eduardo Ribeiro, de Álvaro Maia, Cosme Ferreira Filho, Moyses Israel. Impossível entender a inexistência ao menos um busto em homenagem a Pereira da Silva, a Arthur Amorim, a Roberto Campos e a Castelo Branco, os que formularam as ideias estruturais e o desenho institucional tangentes à criação da Zona Franca de Manaus, o pulmão da economia moderna do Amazonas.
Da mesma forma, passam ao largo, sem o devido reconhecimento público, empresários do porte de Isaac Sabbá, Adalberto Valle, Mário Guerreiro, Isaac Benchimol, Isaac Benzecry, Rioto Oyama. Adicionalmente, convém observar: a não ser os “antigos”, os mais velhos, quem hoje lembra do regatão? A imponente figura que ligava, por meio da rede fluvial amazônica, Manaus aos seringais dos altos rios, transportando gêneros e utensílios e trazendo a borracha, a sorva, a castanha, os couros e peles, as essências vegetais, produtos extrativos da floresta sobre os quais sustentava-se nossa economia.
Nenhum deles, até os dias correntes, lamentável e vergonhosamente foi homenageado com uma estátua ou ao menos um simples busto exposto em algum logradouro da cidade.
Dever de cidadão
Sou, por formação, sensível ao enaltecimento da história memorialística de um povo como meio de potencializar o presente e o futuro. Entendo a necessidade não de “reviver” o passado, mas de resgatá-lo para melhor compreender o presente e, por extensão, adquirir meios catalisadores de um futuro livre dos erros e amarras pregressas.
Max Weber (1864-1920), ao publicar em 1904 “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, considerado, na lista das obras de não-ficção como o livro do século XX, tornou-se conhecido do mundo científico por buscar comprovar perante a história a eficácia da interpretação da sociedade partindo “não dos fatos sociais já consolidados e suas características externas (leis, instituições, normas, regras, etc.), mas centrando-se no indivíduo que nela vive, ou melhor, pela verificação das ‘intenções’, ‘motivações’, ‘valores’ e ‘expectativas’ que orientam as ações do indivíduo na sociedade”.
Entendo, com efeito, ser do dever dos que integram academias, entidades científicas, históricas e literárias, dos políticos e do próprio cidadão, ter como missão basilar, dentre outras funções específicas, retratar, cultuar e homenagear a presença e o papel dos pioneiros, homens e mulheres que se dedicaram à construção de nossa terra nos seus mais diversificados setores de atividades. A esses heróis esquecidos que, embrenhados nos altos rios, ali estabeleceram raízes, criaram famílias, descendências e fincaram os marcos civilizatórios que permitiram a construção do hoje estado do Amazonas e de sua capital, Manaus, a Manaós de nossos ancestrais, ora completando 351 anos.
Vexatório constar, portanto, que, salvo na Praça da Saudade, onde se ergue estátua em tributo a Tenreiro Aranha (1798-1861), primeiro presidente da Província do Amazonas, nossos ancestrais, os pioneiros que construíram nossa economia, nossa cultura e nossa história não mereceram ainda o reconhecimento por seus feitos históricos. Ao contrário, continuam solenemente ignorados.
Promover o imediato resgate desse passivo oneroso é um dever e uma obrigação de cada um de nós. Ouço, amiúde, de pessoas de alta representatividade social e econômica absurda sequência de desculpas esfarrapadas na tentativa de justificar o descaso de autoridades e representações políticas para com nossa história. Dentre as mais comuns, a estapafúrdia afirmação de que “o amazonense odeia sua terra”.
Algumas dessas pessoas, embora membros destacados da comunidade, minimizam qualquer sentimento de culpa em relação a esse descaso. Embora mantenham apartamentos em Fortaleza, no Rio ou em São Paulo, adquiridos com recursos amealhados aqui, na terra cujos fundamentos históricos desprezam, mantêm-se acomodadas, individualística e egoisticamente em suas zonas de conforto.
A Assembleia Legislativa e a Câmara Municipal de Manaus, casas do povo, são pródigas em conceder homenagens diversas, títulos de cidadania, medalhas disso e daquilo a personagens, na maioria dos casos sem vinculação de expressão ou sem que hajam prestado serviços relevantes ao nosso Estado. Deploravelmente, todavia, omitem-se no resgate e valorização dos personagens que construíram nossa história.
Memorial aos Desbravadores
Assim entendido submeti à Prefeitura de Manaus, com apoio do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas ( IGHA), do qual sou membro, e na qualidade de cidadão comprometido com a história e o futuro de minha terra, proposta relativa a envio de Projeto de Lei à Câmara de Vereadores de Manaus de criação e construção do Memorial aos Desbravadores a ser instalado em lugar de destaque da cidade homenageando, conjuntamente, e num primeiro momento, o seringueiro, o madeireiro e o pescador.
A proposição foi aprovada por aclamação pelo Conselho de Gestão Estratégica da PMM, do qual sou membro, em reunião do dia 28 de setembro de 2019. A obra, contudo, não foi considerada uma prioridade do Município e, desta forma, sequer foi levada à prancheta de arquitetos e engenheiros. Resta, por conseguinte, a cada cidadão lutar pelo saneamento da dívida e o resgate de nosso passado que, a cada dia, se esvai, perdendo-se nas brumas do tempo. Não podemos, entretanto, apenas e comodamente esperar pelo poder público. Ao contrário, precisamos agir com determinação e consciência do nosso papel perante a sociedade. Afinal, todos somos responsáveis. Somos nós que construímos a história.
Além do mais, nunca é demais repetir: povo sem memória é povo sem história, sem presente, sem futuro. A saber, numa das passagens memoráveis de Casa Grande & Senzala, 1933, Gilberto Freyre assim argumenta: “Não me parece que seja mau o regionalismo ou o patriotismo regional cuja ânsia é a defesa das tradições e dos valores locais, contra o furor imitativo. Não me parece que semelhante corrente de sentimento ponha em perigo a unidade brasileira nas suas raízes ou nas suas fontes de vida. Cuido para que as diferenciações regionais, harmonizadas, serão no Brasil a condição para uma pátria independente na suficiência econômica e moral do seu todo”.
A hora, manauaras, ao que recomenda Freyre é, com efeito, de tomar tento e sair, obstinadamente, em busca de nossos próprios caminhos e soluções. Chega de transferir a terceiros responsabilidades a nós concernentes sobre o futuro desta terra. A começar pela valorização de nossa memória histórica e cultural.
Parabéns Manaus por seus 351 anos.