Lei de Responsabilidade Fiscal limita despesas e endividamento em todas as esferas de governo, mas chega à maioridade com 17 estados e o DF fora do limite de gastos com folha de pagamentos.
Fonte: Alexandro Martello, G1, Brasília
Saudada como um remédio contra a gestão temerária dos recursos públicos no país, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) completou 18 anos de existência, mas ainda enfrenta uma série de desafios para se ver cumprida plenamente.
A lei foi sancionada em maio de 2000 e regulamenta o artigo 163 da Constituição, que trata das contas públicas. Entre as regras impostas por ela, estão limites para as despesas e o endividamento em todas as esferas de governo (municípios, estados e governo federal; Legislativo, tribunais de contas e Judiciário; além de Ministério Público), além do teto para as despesas com funcionários.
Entretanto, em 2017, 18 unidades da federação superaram o chamado “limite de alerta” de 44,1% para os gastos com folha de pagamentos (incluindo aposentados) do Poder Executivo. Quando isso acontece, os tribunais de contas emitem um advertência.
Destas unidades da federação em “alerta”, 15 ultrapassaram o “limite prudencial” de 46,55% da receita corrente líquida em gastos com pessoal e seis delas superaram o teto permitido de 49%. Nesses casos, os estados têm de adotar medidas para conter gastos com pessoal. (veja detalhes mais abaixo nessa reportagem).
Na União, por sua vez, os gastos com pessoal cresceram em 2017, atingindo 41,8% da receita corrente líquida, o maior patamar desde a criação da LRF, mas não superaram o limite, de acordo com dados do Ministério do Planejamento.
O governo federal tem registrado fortes desequilíbrios para cumprir a “regra de ouro” de 2019 em diante (outras informações sobre a regra de ouro também estão mais abaixo nessa reportagem).
Obediência à lei
Em entrevista ao G1, o ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, que também participou da equipe que fez a Lei de Responsabilidade Fiscal, avaliou que a lei é “boa”, mas ele também observou que ela foi descumprida pelos estados – pois alguns deles já ultrapassaram os limites estabelecidos por gastos com pessoal.
“A LRF é uma boa lei, como tudo na vida pode melhorar, pode aprimorar. Mas não é esse o problema. O problema é que não cumpriram a lei. Tão simples quanto isso. E aí os estados que estão em uma situação mais crítica, a gente criou a lei de recuperação fiscal dos estados”, afirmou o ministro.
O regime de recuperação fiscal permitiu a suspensão da dívida com a União, como no caso do Rio de Janeiro, com estabelecimento de contrapartidas por parte do estado. O Ministério da Fazenda avalia que o regime “complementa e fortalece a LRF, que não trazia até então previsão para fornecer aos Estados com grave desequilíbrio financeiro os instrumentos para o ajuste de suas contas”.
Guardia avalia que a LRF tem dispositivos para que os estados não chegassem nessa situação, o que “funcionou durante muito tempo”, mas depois alguns deles começaram a descumpri-la.
Sem a reforma da Previdência Social, acrescentou o ministro da Fazenda, os estados poderão ter mais problemas no futuro com o cumprimento dos limites da LRF. “Então, a reforma é o que está faltando. Para tudo isso aqui fazer sentido. Sem a reforma da Previdência, vamos estar em uma enrascada tremenda [pois os gastos com pessoal continuarão crescendo]”, avaliou.
Efeitos da recessão
De acordo com o pesquisador IBRE/FGV e professor do Instituto de Direito Público (IDP), José Roberto Afonso, que participou da criação da LRF, apesar de o limite ter sido superado em seis estados no ano passado, a lei não falhou.
“Entendo que evitou que fosse pior. O país enfrentou pior recessão de sua história e isso reduziu em muito a receita dos estados, contribuindo para estourar o limite, mesmo que a folha salarial não crescesse. É bom atentar que, enquanto o PIB crescer abaixo de 1% em doze meses, não há governo desenquadrado porque a LRF suspende os limites”, afirmou ele.
Em 2017, o PIB cresceu 1%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), depois de dois anos de tombo (2015 e 2016).
José Roberto Afonso avaliou que a LRF marcou uma “profunda mudança cultural na política fiscal brasileira”, mas observou também que, até hoje, ela não foi adotada plenamente, pois ainda faltam limites para dívidas do governo federal, revisão anual do limite da dívida, conselho para harmonizar das regras.
“Diferentes governos e mandatos parlamentares nunca se dedicaram a completar a eficácia da LRF. Fora isso, ela sempre poderá ser modernizada, como para regular as relações financeiras da União, que se tornou indiretamente o maior banco do país. Já existem vários projetos de lei no Congresso nas duas direções, para completar e para endurecer, mas creio que falte vontade política para sua aprovação”, concluiu o economista.
Máquina pública
A procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Élida Graziane Pinto, avaliou que há inchaço na máquina pública dos estados e municípios brasileiros, e disse que há “má fé associada à preguiça” por parte dos gestores em não fazer uma análise detida da produtividade do seu quadro de pessoal e de avaliação das necessidades reais por servidores.
“Não é avaliada a produtividade do servidor. Qualquer dono de escola particular, diante do número de alunos que tem, com a carga horário dos servidores, sabe qual é a real necessidade de professores para manter a escola, mesmo com afastamentos de férias, licença saúde. O que eu vejo é um inchaço. As prefeituras incham a folha de educação, mas para virar cabide de emprego, ceder para outros órgãos. Vai ver se a qualidade corresponde?”, disse.
Ela avaliou que a LRF é essencial para o país e representa um avanço em relação ao cenário anterior, mas acrescentou os limites estabelecidos para gastos com pessoal, por exemplo, acabam sendo um “ponto de chegada” para os gestores públicos, ou seja, um valor a ser alcançado. “É um ‘check list’ formal que acaba empurrando a preguiça do gestor para bater no teto”, afirmou.
De acordo com a procuradora, os governos continuam “inchando o Estado, virando um cabide de empregos”. “Os comissionados são para fazer caixa para os partidos de quem os indicou. A gente tem de começar a enfrentar as causas e não os sintomas. É mais ou menos querer emagrecer tomando comprimido ao invés de fechar a boca e fazer exercício físico”, declarou a procuradora.
De acordo com análise de Élida Graziane Pinto, há possibilidade de cortes de pessoal de 20% a 30% que estaria “ocioso” nas unidades da federação. “A LRF está indo mal porque somos infantis. Tem de fazer um esforço de qualificar a nossa democracia no debate orçamentário. Não dá pra dar tudo para todos agora. Temos de fazer escolhas qualificadas. É nós contra nós mesmos”, concluiu.
‘Regra de ouro’
Além dos problemas para enquadrar os estados dentro dos limites estabelecidos, a LRF também não trouxe dispositivos suficientes para impedir um forte desequilíbrio na chamada “regra de ouro” – que impede a emissão de títulos da dívida pública para financiar gastos correntes (como pagamento de salário de servidores, ou despesas do dia a dia dos ministérios).
Essa norma apareceu na Constituição Federal de 1988, mas a LRF também traz dispositivos sobre a regra de ouro.
Em seu artigo 42, a LRF veda ao titular dos poderes, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, “contrair obrigações de despesas contratuais que não possam ser cumpridas integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito”.
Mesmo assim, o Tesouro Nacional estimou neste mês que os desequilíbrios da “regra de ouro” somem R$ 260 bilhões em 2019, R$ 307 bilhões em 2020 e R$ 228 bilhões em 2021. Esse é o patamar que a dívida pública subiria acima dos investimentos em cada ano, o que é vetado pela regra.
Para permitir os gastos no próximo ano, o governo incluiu na proposta da Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2019, já encaminhada ao Congresso Nacional, um dispositivo que autoriza a abertura de um crédito suplementar, a ser pedido pelo próximo governo, para que a regra de ouro não seja descumprida.
Essa medida visa evitar que próximo presidente da República, a ser eleito em outubro próximo, descumpra a regra e fique passível de ser processado por crime de responsabilidade.
De acordo com o economista José Roberto Afonso, porém, a LRF não falhou porque não cabe a ela (e nenhuma outra lei) determinar que se cumpra a Constituição. “Nela está inscrita a regra de ouro e também prevista a exceção em caso de desequilíbrio – que tem sido ignorado no debate. Há uma válvula de escape, em situação excepcional, e cabe ao Congresso decidir se a abre”, avaliou.
O secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, afirmou que a regra de ouro terá de ser modificada. “Em algum momento no próximo ano, isso se dará por meio de emenda constitucional. Ela tem alguns problemas. Não é muito claro o sistema de punição e nem instrumentos para cumprí-la. Precisa ser aperfeiçoada”, declarou ele a jornalistas.
Restrições da LRF
A partir do descumprimento do “limite prudencial” de 46,55% da receita corrente líquida para gastos com servidores, explicou o Tesouro Nacional, a LRF determina que já comecem a vigorar restrições aos estados. Ficam proibido, neste caso:
- concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração, salvo por sentença judicial ou de determinação legal ou contratual;
- criação de cargo, emprego ou função;
- alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa;
- provimento de cargo público, admissão ou contratação de pessoal, a não ser em caso de aposentadoria ou morte de servidores das áreas de educação, saúde e segurança;
- contratação de hora extra, exceto em caso de urgência e interesse público relevante.
Se a despesa total com pessoal ultrapassar o limite máximo de 49% das receitas correntes líquidas, por sua vez, a LRF determina que o percentual excedente terá de ser eliminado nos dois quadrimestres seguintes, sendo pelo menos um terço no primeiro, adotando-se, entre outras medidas:
- extinção de cargos e funções quanto pela redução dos valores a eles atribuídos
- é facultada a redução temporária da jornada de trabalho com adequação dos vencimentos à nova carga horária.
Mesmo assim, se não for alcançada a redução dos gastos com pessoal no prazo estabelecido, e enquanto perdurar o excesso, o estado, ou Distrito Federal, não poderá:
- receber transferências voluntárias;
- obter garantia, direta ou indireta, de outro ente;
- contratar operações de crédito, ressalvadas as destinadas ao refinanciamento da dívida mobiliária e as que visem à redução das despesas com pessoal.
De acordo com o governo, as restrições, cuja aplicação são de responsabilidade do Tesouro, estão todas elas relacionadas apenas com transferências e aval para operações de crédito.
O Tesouro Nacional informou ainda que, de acordo com o artigo 59 da LRF, cabe, de forma solidária, ao Poder Legislativo respectivo, diretamente ou com o auxílio dos Tribunais de Contas, e o sistema de controle interno de cada Poder e do Ministério Público a fiscalização das sanções previstas no atingimento de metas estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias e, também, das medidas adotadas para o retorno da despesa total com pessoal ao respectivo limite.
Caso o gestor deixe de ordenar ou de promover, na forma e nos prazos da lei, a execução de medida para a redução do montante da despesa total com pessoal que houver excedido a repartição por Poder do limite máximo, poderá ser punido com multa de 30% dos vencimentos anuais, sendo o pagamento de multa de sua responsabilidade pessoal.
Questionamentos no STF
A LRF também enfrenta questionamentos no Supremo Tribunal Federal (STF) em diversos processos. Todas as ações contestam dispositivos da LRF referentes à fixação de limites de gastos com pessoal para os estados, além da divisão por esferas de Poder e para o Ministério Público.
Além da inclusão dos gastos com pensionistas na despesa total com pessoal. A questão constitucional posta é a ofensa aos princípios federativo e da proporcionalidade, e à autonomia dos entes federados.