De volta a sua cidade de origem, Natal, a ex-Secretária da Receita Federal soltou o verbo em entrevista concedida ao jornal Tribuna do Norte. Diante das reiteradas anistias e possibilidades de parcelamento, ela afirmou que, em resumo, o contribuinte que paga pontualmente os seus tributos se sente um otário.
Leia a entrevista na íntegra:
Quem é Lina Maria Vieira?
Mineira de nascimento e norte-rio-grandense por opção e por título de cidadã concedido pela Assembleia Legislativa. Mãe de três filhos maravilhosos, Rodrigo, Bruno e Renata. Servidora pública federal, com 33 anos de serviços prestados à Nação. Uma pessoa que adora o seu trabalho e é intransigente com sonegadores e pessoas antiéticas.
É difícil ser honesto no serviço público, principalmente num cargo de destaque como o que senhora ocupou até esta semana?
Lamentavelmente, nos tempos de hoje, é difícil ser honesto em qualquer campo de atuação. Vejo com apreensão os exemplos que os jovens estão recebendo: pessoas que amealharam fortunas por meio da corrupção são elogiadas pela “sabedoria”, dizem que são sujeitos “espertos” e a sociedade não apresenta para essas pessoas nenhum tipo de recriminação ou punição. Se a justiça não as pegou, acho que a sociedade devia discriminá-las, repudiá-las mesmo, fazê-las sentir que são pessoas que não merecem respeito.
Quais os maiores entraves que a senhora enfrentou para realizar seu trabalho na Receita Federal?
Encontrei a Receita com muitos problemas, principalmente em função da fusão da Ex-SRP com a Ex-SRF: o atendimento estava um caos (um grande desrespeito ao cidadão contribuinte), os sistemas informatizados daquelas Secretarias não se comunicavam e as pessoas não estavam integradas (foram esquecidas no processo), apenas para ficar nos principais entraves da fusão. Além disso, as nossas fronteiras terrestres estavam abandonadas, a aduana fragilizada, as pessoas desmotivadas, a fiscalização engessada e superficial, o parque tecnológico sucateado e havia uma péssima relação com as administrações tributárias de Estados e Municípios.
O filósofo político florentino, Nicolau Maquiavel, até bem pouco tempo associado ao mal e recentemente reabilitado ao ponto de hoje ser estudado nos cursos de MBAs, dizia que “deve-se ter em conta que não há coisa mais difícil de realizar, nem de êxito mais duvidoso, nem de maior perigo para conduzir, do que o estabelecimento de grandes inovações.”
Adotamos alguns princípios direcionadores considerando a RFB como uma organização nacional:
– Mudamos a estrutura do órgão central (decisões centralizadas no gestor máximo do órgão- reduzimos de 57 para 19 as unidades vinculadas ao gabinete);
– A melhoria do atendimento ao cidadão, com a quebra de paradigmas de que em nome da segurança do sistema as coisas só poderiam acontecer com certificação digital. Hoje o cidadão tem conhecimento de todas as suas informações fiscais e cadastrais através do acesso por senha e pode auto-regularizar suas pendências pela internet, sem enfrentar filas. Até o mês de outubro será disponibilizado ao cidadão o agendamento, para que tenha dia e hora para ser atendido nos CAC;
– Demos maior transparência aos números da arrecadação, da carga tributária e das fiscalizações;
– Criamos uma coordenação de integração com as administrações tributárias estaduais e municipais para em conjunto e disponibilizando e cruzando informações combater o crime organizado (contrabando, sonegação, descaminho, fraude etc);
– Ampliamos a capacidade de análise da política tributária firmando convênios com o IPEA, Universidades, CNPq, Institutos de pesquisa e cooperação Interinstitucional com o Ministério Público, Polícia Federal, Tribunal de Contas da União, Forças Armadas;
– Integramos a RFB ao macroprocesso do crédito tributário que dará maior agilidade na tramitação processual, solução dos litígios e execução do crédito tributário;
– Implantamos o Planejamento Estratégico da RFB e estruturamos o Escritório de Projetos Estratégicos;
– Reformulamos a página da RFB na internet, com ênfase na prestação de serviços;
– Incluímos o módulo de Contribuição Previdenciária no Sistema PERDCOMP;
– Mudamos as normas relativas as obras de construção civil;
– Melhoramos o acesso aos sistemas da Previdência.
– Na área de valorização das pessoas que integram a RFB instituímos o acesso aos cargos de confiança por meio do Processo Seletivo Interno -PSI que considera o mérito e não “quem indica”, afastando qualquer ingerência política na escolha dos Delegados e Inspetores; Instituímos o Quadro de vagas, o Banco de Talentos e o Painel de Intenção de Mobilidade, com a introdução de política permanente de movimentação do servidor público;
– Elaboramos a minuta de edital e demais procedimentos para a realização do Concurso Externo para Auditores e Analistas;
– Concluímos os estudos preliminares de lotação e do Plano de lotação;
– Concluímos, também, o módulo de gestão de mercadorias apreendidas – banco de necessidades, gerenciamento de capacidade de depósitos, administração eletrônica e infraestrutura de armazenagem, o Banco de Mercadorias Apreendidas e o Leilão Eletrônico
que, em breve serão lançados;
– Mudamos o foco da fiscalização, que antes era na quantidade de ações fiscais e superficial, ou seja, os esforços da fiscalização estavam direcionados aos contribuintes de menor capacidade econômica, à realização de procedimentos fiscais menos complexos e voltados aos exercícios mais antigos, o que gerava uma série de resultados inócuos, como lançamentos em empresas já encerradas, cujo crédito tributário é de difícil recuperação. Intimamos as 10 mil maiores empresas dopais quase que simultaneamente, a apresentarem a sua contabilidade em meio digital, fato inédito e que representa uma mudança de paradigma atual, pois, além de focar a atuação fiscal nas empresas de grande capacidade econômica, haja vista que as referidas empresas representam 70% da arrecadação, foram solicitados os arquivos dos anos de 2007 e 2008 e, como disse, aproximando a fiscalização do fato gerador.
No novo modelo introduzido para a fiscalização passou-se a focar a qualidade, profundidade, proximidade ao fato gerador e efetividade do lançamento. Já no segundo semestre deste ano iniciaremos as fiscalizações dos fatos geradores de 2008, fato que aumentará o risco e, com certeza, repercutirá na arrecadação espontânea; Introduzimos o acompanhamento e análise dos setores econômicos e grandes grupos empresariais e aumentamos os procedimentos fiscais nos contribuintes de maior capacidade econômica. Até junho/2009 foram constituídos créditos tributários na fiscalização no valor de R$ 35.78.107.041,00, considerando os encerrados parcialmente;
– Criamos uma divisão para acompanhamento de pessoas físicas de alta renda e a malha Pessoa Jurídica;
Na Portaria de metas de fiscalizações de 2009 quebramos o engessamento das metas , passamos a utilizar novas ferramentas para a seleção de contribuintes a serem fiscalizados;
– Fortalecemos as Delegacias Especiais de Instituições Financeiras (DEINF) e a Delegacia Especial de Assuntos Internacionais aumentando o número de auditores (ex. de 15 para 70 auditores na DEINF), selecionados por meio de processo seletivo interno (PSI);
Voltamos a força da fiscalização para os grandes contribuintes e os números respondem por essa mudança de foco: no1º semestre de 2008 a fiscalização lançou, aproximadamente R$ 800 milhões em autos de infração nas Instituições Financeiras e no mesmo período de 2009 foram quase R$ 5 bi (R$ 4.774.425.673,00).
A senhora foi muito assediada por grandes devedores pedindo facilidades?
Desde o início deixei claro que os princípios da legalidade e da impessoalidade seriam o esteio da minha gestão. Não deixei espaço para esse tipo de assédio.
A senhora disse que o contribuinte que paga compulsoriamente seu imposto se sente “um otário” quando vê os grandes sonegadores triunfarem. A senhora se sente assim?
Sim. A concessão de parcelamentos a cada dois/três anos, sempre com condições cada vez mais favoráveis ao mau pagador, transforma o contribuinte adimplente no otário que acreditou no sistema. A MP 449 coroou o mau contribuinte e deixou para futuros otários a conta da crise.
Quanto custa a sonegação fiscal ao bolso do contribuinte?
Não há estimativas precisas no Brasil. A falta de transparência nas informações da RFB impossibilitava a realização de estudos acadêmicos sobre a questão. Para tentar corrigir essa deficiência, fizemos um convênio com o IPEA, que já está produzindo bons frutos. O primeiro resultado dessa parceria foi a análise da carga tributária de 2008.
Se sente frustrada e/ou magoada com a forma como foi demitida?
Não. É da natureza dos cargos de confiança a exoneração a qualquer tempo.
Diante de tudo isso, minha mente está quieta, a espinha ereta e o coração tranqüilo, lembrando um compositor maior. Nossos princípios estão intactos; nossos valores incólumes.
Qual a maior lição que a senhora tira como gestora pública?
Que a gestão pública deve ser menos corporativa e mais republicana; menos autoritária e mais participativa; menos autocrática e mais democrática; menos centralizadora e absorvente; mais capilarizada e descentralizada.
O dinheiro arrecadado com o imposto é mal empregado?
Na década de noventa a carga tributária cresceu mais de 8 pontos percentuais, atingindo 33% do PIB. Desse montante, 6 pontos percentuais foram para sustentar a política monetária, que pagou juros altíssimos para o andar de cima. Sem dúvida, essa é uma péssima aplicação do imposto arrecadado.
Por que a mudança de regime fiscal, feita pela Petrobras, foi considerada ilegal pela Receita Federal?
A RFB não se manifesta publicamente sobre conduta e/ou situação fiscal de contribuintes especificamente; o sigilo fiscal nos proíbe. Apenas nos manifestamos sobre setores econômicos e sobre legislação. A esse respeito divulgamos nota nos limitando a reproduzir esclarecimentos sobre o sistema de compensação que se encontra no sítio da RFB: WWW.receita.fazenda.gov.br/perguntao/dipj2009/CapituloVIII-LucroOperacional2009.pdf, pergunta 144.
Como motivo oficial da sua demissão, o governo tem divulgado a queda na arrecadação, pelo oitavo mês consecutivo. Que análise a senhora faz dessa tendência negativa?
Tentou-se criar essa imagem há alguns dias antes de minha saída, mas isso foi desmitificado, tanto é que, na Nota Oficial do Ministério da Fazenda não há nenhuma referência a queda de arrecadação. A própria imprensa deixou de lado essa abordagem, porque foi evidenciado que houve uma arrecadação atípica em 2008 decorrente da enxurrada de aberturas de capitais na Bolsas (as chamadas IPO), de modo que não se pode fazer comparação da arrecadação de 2009 com o ano anterior. Ademais, este ano foi e ainda está sendo um ano de crise econômica e o governo optou para o seu enfrentamento em desonerar setores importantes da economia (a desoneração no primeiro semestre foi de 13 bilhões de reais) e alargamento do prazo de pagamento dos tributos, sinalizando que a arrecadação pagaria a conta da crise para manutenção do emprego e renda.
Um outro motivo, apontado pela imprensa, foi que a Receita, sob sua gestão, teria endurecido com os bancos. O sistema bancário tem previlegios e/ou está mal acostumado com o tratamento que recebe da fiscalização tributária brasileira?
Não sei este foi um dos motivos para minha exoneração. Mas é fato que mudamos o foco da fiscalização, passando a priorizar os grandes setores, entre eles, logicamente, o financeiro. Pra se ter uma ideia, no primeiro semestre de 2008 a Receita autuou as instituições financeiras em 800 milhões; já o nosso trabalho no primeiro semestre de 2009 resultou em 4,8 bilhões de reais de autuações nesse setor.
A sua decisão de mudar o processo de provimento de cargos, escolhendo funcionários de carreira e com certa militância sindical para ocupar postos chaves na Receita, mexeu com interesses de grupos corporativos e também podem estar nas origens da sua demissão?
Certamente que não, pois as escolhas que fizemos foram baseadas unicamente na competência. Se algumas dessas pessoas foram ou são militantes sindicais, não vejo demérito algum; ao contrário, as entidades sindicais do Fisco Federal são extremamente respeitadas em todo pais. Veja o artigo de Élio Gaspari na Folha de São Paulo quando ele diz que: a) “a Unafisco, ao contrário do sindicato dos pipoqueiros, reúne servidores do estado que chegaram a receita por concurso público”; b) “deve-se reconhecer que foi a Unafisco que mordeu os calcanhares da quadrilha aninhada na cúpula da receita”. Hoje 95% da categoria é sindicalizado.
Infelizmente, neste país, quando se quer fazer justiça e trabalhar honestamente, é afastado do cargo ou perseguido.
Parabens à Sra. Lina Vieira.
A Sra. é motivo de orgulho para muitos brasileiros.