De uma vez por todas: recebe-se a acusação porque estão presentes suas condições de admissibilidade, segundo as categorias jurídicas próprias do processo penal (fato aparentemente criminoso, punibilidade concreta, legitimidade e justa causa)[i], e motivada deve ser a decisão. O in dubio pro societate é uma fraude retórica à serviço da mentalidade autoritária e de jurista preguiçoso. Sem falar que nunca foi recepcionada pela Constituição ou a Convenção Americana de Direitos Humanos (falta assim conformidade constitucional e convencional).
A noção de justa causa, como núcleo imantador das condições de admissibilidade da acusação, não pode mais ser entendida como o acoplamento hipotético-formal da acusação. Deve considerar as implicações da instauração penal, a partir da leitura da criminologia[1], dando-se relevo ao juízo político criminal das imputações, dentre elas as bagatelares e abusivas, bem como aos custos decorrentes da aceitação de todas as acusações. Acrescente-se, ainda, que diante da delação e leniência surge novo modelo de disponibilidade do exercício da acusação por parte do Estado, cujos efeitos ainda não se espraiaram. Nesse momento, então, surgem novas tarefas de controle jurisdicional que dependem do mapa mental do jogador-acusador e do julgador em face da qualidade dos requisitos de admissibilidade da acusação[2].
Dessa maneira, no momento do recebimento da ação penal, é necessária a verificação da parametricidade entre a imputação da denúncia e a descrição fática[3] analisada em face dos elementos probatórios justificadores da ocorrência de justa causa. Não se pode falar genericamente no direito ilimitado de acusar, dado que isso significaria abuso de direito[4], especialmente no mundo de escassez de recursos, no qual se deve verificar o trade-off da ação proposta[5]. Dito de outra forma: o direito de ação abstrato do Estado não se confunde com as condições para o exercício. Pretende-se deslocar a teoria vigente da ação para se demonstrar que o exercício da ação deve levar em conta o cenário e o contexto em que a ação é proposta, tanto em relação ao direito penal quanto à capacidade de assimilação da unidade jurisdicional, especialmente porque se pensa a partir da Teoria dos Jogos.
É um erro pensar na perspectiva civilista de “ação como direito abstrato”, porque no processo penal, desde o início, é imprescindível que o acusador público ou privado demonstre a justa causa, os elementos probatórios mínimos que demonstrem a fumaça da prática de um delito, não bastando cumprimento de critérios meramente formais. Não há, como no processo civil, a possibilidade de deixar a análise da questão de fundo (mérito) para a sentença, pois desde o início o juiz faz juízo provisório, de verossimilhança sobre a existência do delito.
Na ação processual penal, o caráter abstrato coexiste com a vinculação a uma causa, que é o fato aparentemente delituoso. Logo, uma causa concreta. Existe assim uma limitação e vinculação a uma causa concreta que deve ser demonstrada, ainda que em grau de verossimilhança, ou seja, de fumus commissi delicti. Portanto, nessa linha de pensamento (que é a mais próxima da realidade do processo penal, sublinhe-se), a ação processual penal é um direito potestativo de acusar, público, autônomo, abstrato, mas conexo instrumentalmente ao caso penal[ii].
A “pedalada” motivacional do in dubio pro societate[6], significante vazio e manipulador da devida análise dos requisitos legais, ainda é dominante, embora boa parte dos magistrados já se envergonhe de tal proceder, assim como no drible da pronúncia[7]. Claro que é cômodo e a maioria usa, até o dia em que se dá conta de que não faz sentido jogar para drible do in dubio pro societate. Não se trata de condenação antecipada, nem de receber sem motivação, mas de analisar os requisitos legais em juízo de probabilidade[8].
Decorrência do in dubio pro hell[9], repete-se o do in dubio pro societate, outra invenção da hermenêutica do conforto, em que, no caso de dúvidas, prevalece o interesse coletivo, da sociedade. A única presunção é a de inocência. Diante das dificuldades probatórias, articula-se esse mecanismo capaz de demitir os jogadores/julgadores da necessária fundamentação[10].
Portanto, não se pode invocar o in dubio pro societate para burlar o necessário enfrentamento da presença (ou ausência) das condições de admissibilidade da acusação, fundamentando essa decisão, sem desconsiderar que não se está a exigir uma cognição exauriente ou a plena convicção, mas, sim, um juízo de verossimilhança, de probabilidade, que não isenta de fundamentação e elementos probatórios mínimos. Presente a verossimilhança das condições de admissibilidade, que se fundamente e receba a acusação. Não superando esse juízo de convicção, deve ser rejeitada a denúncia. Não existe espaço para o drible do in dubio pro societate como imunizador retórico ao dever de fundamentação e enfrentamento da justa causa (e demais condições).
Como vimos, o drible acontecer no parecer da Comissão de Constituição e Justiça, no caso do acusado Michel Temer, cabe sublinhar que é muito utilizada no recebimento da denúncia e na decisão de pronúncia, em que se omite deliberadamente a necessidade de motivação, atribuindo-se ao in dubio pro societate um poder mágico-retórico incompatível com a democracia[11]. Mas opera.
[1] DIVAN, Gabriel Antinolfi. Processo penal e política criminal: Uma reconfiguração da justa causa para a ação penal. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015, p. 542.
[2] LOPES JR, Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Podemos seguir a releitura da justa causa apresentada por Divan? Conferir: http://www.conjur.com.br/2016-jan-15/limite-penal-podemos-seguir-releitura-justa-causa-apresentada-divan.
[3] STJ, RHC 39.627 (min. Rogerio Schietti Cruz): “Na hipótese em apreço, a denúncia imputou à recorrente o crime de homicídio doloso, por haver — ao deixar de comparecer ao hospital a que fora chamada quando se encontrava de sobreaviso — previsto e assumido o risco de causar a morte da paciente que aguardava atendimento neurológico. No entanto, a exordial acusatória não descreve, de maneira devida, qual foi o atendimento médico imediato e especializado que a recorrente poderia ter prestado (e que não tenha sido suprido por outro profissional) e que pudesse ter evitado a morte da paciente, bem como não descreve que circunstância(s) permite(m) inferir que tenha ela previsto o resultado morte e a ele anuído”.
[4] SOUZA, Alexander Araújo de. O abuso do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 76-109.
[5] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
[6] KHALED JUNIOR, Salah Hassan; ROSA, Alexandre Morais da. In dubio pro hell: profanando o sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 130: “O in dubio pro societate é mais uma expressão patológica do ranço inquisitório do processo penal do inimigo, do qual não conseguimos ainda nos livrar”; LOPES JUNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 269. “Outro aspecto importante é que não existe fundamento jurídico para o chamado in dubio pro societate e a única presunção admitida no processo penal é a de inocência. Nessa linha de raciocínio, devemos destacar que a afirmação sobre a qual deve recair a decisão é aquela que vem feita na denúncia, apontando a autoria e a materialidade de um fato aparentemente delituoso. Logo, incumbe ao MP o ônus total e intransferível de demonstrar a provável existência do fumus commissi delicti afirmado”.
[7] PEREIRA, Márcio Ferreira Rodrigues. Acusar ou não acusar? In dubio pro societate é (?) a solução. Uma perversa forma de lidar com a dúvida no processo penal brasileiro. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, v. 1, n. 1, abr./mai. 2000, p. 82-83.
[8] MELCHIOR, Antonio Pedro; CASARA, Rubens R R. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. Vol. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 420: “A partir do significante sociedade, constrói-se a ideia de um interesse comum, supostamente consensual, de que, na dúvida, vale mais a submissão ao processo penal do que a limitação ao poder de perseguir do Estado. É dessa forma que ensina a doutrina nacional: no momento do recebimento da denúncia (inicial acusatória) vige o princípio do in dubio pro societate”.
[9] MORAIS DA ROSA, Alexandre; KHALED, Salah H. In dubio pro hell I: profanando o sistema penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 26: “Em última análise, é preciso fazer uma clara opção pelo devido processo substancial, cada um no seu quadrado, sem funções de acusação e gestão da prova por parte do julgador (não pode se confundir com um dos jogadores), fundado na dignidade da pessoa humana — e, logo, na presunção de inocência —, ou por um processo de inspiração inquisitória, fundando na logica da persecução ao inimigo: in dubio pro reo ou in dubio pro hell?”.
[10] MORAIS DA ROSA, Alexandre; KHALED, Salah H. In dubio pro hell I: profanando o sistema penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 99: “O argumento é falacioso e insustentável. Isso porque não há fundamento legal para tal proceder, salvo o mapa inquisitório e silencioso que compõe as coordenadas simbólicas dos atores jurídicos mofados que perambulam nos foros do país, talvez atrás de novos hereges, bodes expiatórios, capazes de devolver, não se sabe como, a ingênua paz. Mescla de ingenuidade com má-fé, defende-se que o processo peal pode se iniciar/continuar sem que se tenha a dimensão do impacto subjetivo do lugar de acusado/condenado”.
[11] MORAIS DA ROSA, Alexandre; KHALED, Salah H. In dubio pro hell I: profanando o sistema penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 103-104: “Daí que a utilização em qualquer momento da regra de bolso do in dubio pro societate é uma ‘gambiarra’ retórica utilizada por atores jurídicos preguiçosos e muitas vezes alienados do seu respectivo papel de compreender autenticamente o regime probatório existente, analisando motivadamente o recebimento da denúncia, a decisão de pronúncia e a revisão criminal, três momentos em que se utiliza da regra de bolso do in dubio pro societate, uma das faces do in dubio pro hell”.: PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Pronúncia e o in dubio pro societate. In: PIERANGELLI, José Henrique (coord.). Direito Criminal. Vol. 4. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 55: “O tema é o mero aforismo — não um princípio de Direito — in dubio pro societate, como eventual fundamento da decisão interlocutória de pronúncia, emergente no procedimento especial de Júri (art. 408, caput, do Cód. de Proc. Penal)”.
[i] Como explica Aury Lopes Jr (Direito Processual Penal, 14ª ed, e Fundamentos do Processo Penal, 3ª Ed), é um grave equívoco da teoria geral do processo identificar as condições de admissibilidade da acusação (do processo penal, portanto) com as condições da ação (processo civil). Categorias como “possibilidade jurídica do pedido” ou “interesse” são absolutamente incompatíveis com o processo penal. Então, o que faz a doutrina processual penal para aproveitar essas condições da ação processual civil? Entulhamento conceitual. A intenção é boa, e isso não se coloca em dúvida, mas o resultado final se afasta muito do conceito primevo. Pegam um conceito e o entulham de definições que extrapolam em muito seus limites, culminando por gerar um conceito diverso, mas com o mesmo nome (que não mais lhe serve, por evidente). Tudo isso porque desconsideram uma premissa básica: é preciso respeitar as categorias jurídicas próprias do processo penal e sua complexa fenomenologia, como já tratamos à exaustão em diversos momentos.
[ii] LOPES Jr., Aury. Fundamentos do Processo Penal, 3ª Ed., p. 102-113.
Aury Lopes Jr é doutor em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).