Para a nossa reflexão. Recomendo a leitura.
Serafim Corrêa
Fonte: G1
As ondas de preconceito, dor e racismo provocadas pela chegada dos navios negreiros, que durante mais de três séculos trouxeram cerca de cinco milhões de escravos da África até o Brasil, ainda batem com força e geram efeitos devastadores na sociedade – desigualdade e segregação estão entre os mais visíveis, mas não são os únicos.
O escritor e jornalista Laurentino Gomes faz essas afirmações com a segurança de quem, nos últimos seis anos, dedicou quase que todo o tempo ao estudo aprofundado da captura, encarceramento e transporte forçado de cativos africanos durante os anos do Brasil Colônia.
O resultado do trabalho foi lançado na Bienal do Rio – “Escravidão – Volume 1” é a primeira parte de uma trilogia que será concluída nos próximos dois anos e que pretende contar a trajetória do tráfico de 5 milhões de escravos trazidos para o Brasil ao longo de três séculos de meio de tráfico.
A necessidade de construir um histórico da escravidão em território nacional nasceu durante a escrita de suas obras anteriores – os sucessos editoriais 1808, 1882 e 1889.
“Ali, tentei explicar o surgimento do Brasil enquanto nação independente a partir da chegada da família real – como a nação se organizou em termos legais e administrativos tendo como parãmetro o modelo português. Aos poucos, porém, percebi que, por baixo disso, no alicerce de tudo, havia algo mais importante: a escravidão. Tanto que, se você olhar com atenção, vai ver que os três livros já têm capítulos que tratam desse tema. Ficou claro para mim que, para compreender o Brasil de verdade, precisava mergulhar fundo no tráfico de escravos entre a África e o nosso país”.
A jornada para a concepção da obra começou com a leitura de 200 livros sobre o tema. Logo em seguida, o escritor saiu em campo: visitou várias bibliotecas nos Estados Unidos onde, segundo ele, há material vasto sobre a escravidão no Brasil e conheceu as fazendas do interior americano, locais onde ocorreram processos de escravidão semelhantes aos implantados no Brasil.
Logo em seguida, mudou-se para Portugal por seis meses – de lá, fez viagens a oito países africanos, de onde saíam os navios que levavam os escravos até o Brasil.
“Primeiro visitei Cabo Verde, local que podemos chamar de primeiro ‘hipermercado’ de mão de obra escrava na história do Atlântico. Era um arquipélago desabitado quando os portugueses chegaram lá, ainda no século 15. Ali, eles capturavam e distribuíam escravos para outros locais, como as Ilhas Canárias e São Tomé e Príncipe, onde estabeleciam plantações de cana de açúcar. Foi uma espécie de laboratório inicial do fluxo de escravos que viriam para o Brasil”.
Seguiram-se viagens a Angola e Congo – de onde vieram 70% dos escravos trazidos ao Brasil – e ao Golfo de Benin e Moçambique, último território fornecedor de mão de obra cativa.
“Também percorri o Brasil. Fui a locais como a Serra da Barriga, onde morreu Zumbi dos Palmares, e o Cais do Valongo, na Zona Portuária do Rio, maior porto negreiro do começo do século XIX”.
Neste primeiro volume, o escritor aborda desde o primeiro leilão de negros cativos, em agosto de 1444, ainda antes do descobrimento, até a morte de Zumbi dos Palmares, em 1695.
A descrição dos movimentos iniciais daquilo que, mais tarde, seria conhecido como tráfico negreiro é um dos pontos que mais chama atenção no texto. Muito por conta da brutalidade a qual os negros escravizados eram submetidos ainda no processo de transporte entre a África e o Brasil.
“As condições dos navios eram as piores que podemos imaginar. Pelo menos 1,8 milhão de pessoas morreram na travessia do Atlântico. Se dividirmos a quantidade de mortos no transporte pelo número de dias de escravidão vigente naquele período, chegaremos a um resultado assustador: pelo menos 14 escravos morriam por dia – todos eram arremessados ao mar. É uma situação tão terrível que relatos da época dão conta que isso mudou o comportamento dos cardumes de tubarões – todos passaram a seguir os navios negreiros à espera de alimento fácil. Ou seja, a dor e o sofrimento provocados pela escravidão começavam bem antes da chegada ao Brasil”.
O Brasil foi o maior território escravista do continente americano. Além disso, foi o último a abolir o tráfico negreiro – por meio da lei Eusébio de Queiroz, de 1850 – e o último a pôr fim à escravidão, em 1888, 15 anos depois de Porto Rico e dois depois de Cuba.
A busca por escravos nasceu a partir da necessidade dos portugueses de conseguir a mão de obra necessária para a produção de bens como o açúcar – antes da escravidão, um bem caríssimo e inacessível à maioria das pessoas na Europa.
Essa situação começou a mudar com a chegada dos portugueses no Brasil. A criação de grandes plantações de açúcar, mas também de tabaco, algodão e café levaram os colonizadores a buscarem mão de obra em grande quantidade.
Em um primeiro momento, os portugueses tentam escravizar os índios – estratégia que, desde o início, não deu certo. Primeiro porque milhares de indígenas sucumbiram às doenças trazidas pelo próprio colonizador – entre elas, gripe, malária e varíola. Além disso, não havia no Brasil um mercado estabelecido de mão de obra escrava no Brasil.
Laurentino Gomes: “É muito difícil ver negros ocupando cargos importantes. Resultado do preconceito que está ligado de forma direta à escravidão no Brasil” — Foto: Carlos Brito
Foi nesse instante que os portugueses começaram a olhar em direção à África.
“A venda de escravos já existia há milhares de anos no continente africano. Era uma prática ancestral, muito anterior à chegada do europeu. Lá, já existiam feitorias, locais de captura e rotas de transporte escravagista para o Oriente Médio”.
Na África, a captura de escravos se deu em três fases: na primeira, em meados do século 15, os próprios portugueses sequestravam negros na costa da Mauritânia e do Senegal.
No entanto, em pouco tempo, perceberam que estavam em ambiente hostil – muitos africanos resistiam e matavam o invasor, por meio da utilização de flechas, dardos e lanças.
Em um segundo momento, os portugueses criaram alianças com tribos locais para levar inimigos de outras tribos que haviam sido capturados. Estes eram trocados por ouro em Gana.
“E há a terceira fase, a mais extensa e significativa para a nossa história, quando se estabelece um acordo entre os invasores e as elites militares africanas. Estimuladas pelos portugueses, estas promoviam guerras contra tribos rivais. Todos os inimigos capturados eram vendidos como escravos que acabavam no Brasil”.
Laurentino Gomes: “Existe um desnível enorme entre descendentes de europeus e descendentes de africanos no Brasil”. — Foto: Miguel Folco
De forma oficial, a escravidão no Brasil chegou ao fim no dia 13 de maio de 1888, quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea.
Na prática, porém, seus efeitos ainda permanecem.
“Joaquim Nabuco já dizia que não bastava acabar com a escravidão – também era necessário tratar de seu legado. É triste, mas isso jamais foi feito. Os escravos e seus descendentes jamais tiveram acesso a educação, terra e trabalho. Essa enorme massa da população brasileira, que é majoritária, não ganhou cidadania. Na verdade, tudo o que o Brasil fez foi se livrar da mancha da escravidão, que comprometia sua imagem internacional no fim do século 19. No entanto, o país abandonou sua população afrodescendente à própria sorte”.
Para o escritor, o resultado dessa abordagem é visto com facilidade em todos os cenários da sociedade brasileira.
“Há um desnível imenso entre os descendentes de europeus e descendentes de africanos no Brasil. E isso vale para qualquer item – renda moradia, educação, insegurança. Olhe para as periferias, olhe para as favelas, olhe para os presídios. Os negros estão sempre nas piores condições. Os mais importantes cargos da administração pública, os diretores de empresas privadas, os professores de universidades, escritores, médicos, advogados, diretores de cinema e teatro – basta olhar, quase nunca são negros. O que é absurdo, vista a importância central da presença do negro na cultura, na política e na economia nacionais. Tudo isso deixa muito claro que a escravidão e o preconceito resultante dela permanecem no DNA da sociedade brasileira”.