“Niños del mundo, si cae España – digo, es un decir – si
madre España cae, salid, niños del mundo; id a buscarla!”.
(César Vallejo – España, aparta de mi este cáliz)
O que a morte da cantora Ângela Maria sepultada domingo passado, aos 89 anos, tem a nos dizer sobre a eleição no Brasil? Essa pergunta só pode ser respondida por aqueles que foram embalados por sua voz. É o caso deste locutor que vos fala, que em sua infância, nos anos 1950, escutava a “rainha do rádio” imperar soberana nas emissoras de Manaus e no salão de beleza unissex instalado por nossa vizinha Leonor na sua sala de visitas, no Shit’s Alley do bairro de Aparecida, então beco Carolina Neves, hoje rua Elisa Bessa.
Aquele mesmo espaço ocupado pelo Leo’s Fashion Hair estava antes repleto de verduras e bananas que a Leonor vendia. Com a troca de ramo empresarial, ela passou a cortar cabelos, depilar, pedicurar e manicurar. O up grade deu certo. Com o faturamento, a improvisada esteticista investiu no negócio. Cometeu uma extravagância: comprou no crediário uma rádio vitrola telefunken e o disco de vinil – “A Brasileiríssima” – de Ângela Maria, que se juntou ao LP “Waldick Sempre”, presente do cunhado Petel. Esse era todo o acervo de sua discoteca. Mas era suficiente para ouriçar o salão e atrair a clientela.
Rainha do Rádio
Foi assim, modestamente, que o Leo’s Fashion Hair inovou o conceito de padrão de qualidade. Lá se cuidava da “saúde das unhas”. Lá o corte de cabelo era adequado ao tipo de rosto. Lá minha irmã Tequinha, de cara redonda, adotou o “Modelo Diakui” em forma de cuia, com a tesourada e a escova progressiva conferindo mais textura aos fios de seus cabelos lisos. Mas o que atraía mesmo a freguesia era que lá se ouvia todos os dias, o dia todo, a Sapoti cantando “Cinderela”, o carro-chefe do LP, que celebrava a “menina moça, coração a palpitar” à espera do príncipe encantado.
– “Venha de onde vier, chegue de onde chegar”. As cinderelas do bairro pobre iam ao delírio quando aquela voz majestosa soluçava o “laririri, laririrá”. Ninguém no Brasil, quiçá no planeta, imitava aquele trinado melodioso e cativante, aquela cadência melódica, exceto Cleomar Feitosa, professora de música no Instituto de Educação do Amazonas (IEA). Ao ouvi-la cantar Cinderela, num piquenique no balneário das Pedreiras, o igarapé do Mindu foi inundado com as lágrimas salgadas dos ouvintes, que jorravam em cascatas. Estão aí Cleo e Leo, ambas com mais de 80 anos, que não me deixam mentir. Ou deixam?
Mas onde é mesmo que eu estava? Ah, no velório da Ângela Maria e na sua relação com as eleições. A cantora viveu duas experiências eleitorais como candidata. Na primeira, em 1954, obteve uma avalanche de votos apurados pela Revista do Rádio, quando 1.464.906 pessoas sufragaram seu nome como “Rainha do Rádio”. A segunda, em 2012, quando se candidatou a vereadora na cidade de São Paulo e amargou fragorosa derrota porque ninguém ouvia mais o “lariri-larilá”
Com tal experiência, se viva fosse, em quem a Sapoti votaria? Qual as opções que lhe são oferecidas? Supunhetemos que a eleição não é no Brasil, mas no Monculdumundistão, um país asiático. O candidato Pas Lui apresenta seu programa de governo para uma população assustada com assaltos, crimes, corrupção e impunidade. Ele garante que dará segurança a todos. Como? Desarmando os bandidos? Necas de pitibiribas. Entregando armas para cada “homem de bem” se defender pessoalmente, isto é, para fazer justiça com as próprias mãos. As ações da indústria de armas subiu na Bolsa de Valores.
Pas Lui
Em política exterior, Pas Lui anuncia que vai retirar o Monculdumundistão do Acordo de Paris sobre o clima, pois vê nele ameaça à soberania nacional. O clima, como o petróleo, é nosso e ninguém tasca. Diz que proteger a floresta é mimimi de ambientalista, que é preciso cortar árvores para aumentar a área destinada à agricultura e às patas dos bois, que vai liberar o agrotóxico, gerando empregos no agronegócio. Garante que em seu governo não será demarcado um só centímetro de terras indígenas e quilombolas, que índio é preguiçoso e negro é malandro como mostra seu peso em arrobas.
Ângela Maria assiste, alarmada, Pas Lui ameaçar conquistas sociais obtidas em décadas de luta. O cara defende a reforma trabalhista que favorece o lucro dos empresários, reduz salários e a licença-maternidade, alegando que isso permitirá contratar mais gente. Uma empresa que dispõe de R$10 mil pode remunerar 10 trabalhadores com salário de R$ 1 mil. Se reduzir para R$ 900,00, é possível pagar 11 trabalhadores. Desta forma, ele jura que criará empregos ao extinguir o 13º salário e o adicional de férias e de insalubridade para mulheres gestantes e lactantes. Estranha forma de fazer “justiça social”.
Raso de ideias, Pas Lui pratica com eficiência o terrorismo, bombardeando as redes sociais com memes e fake news. Foge do debate com outros candidatos para não expor ainda mais sua fragilidade. Ataca as mulheres, os gays, as minorias, defende a tortura como prática institucional do Estado. Ele não esconde aquilo que – digamos assim – “pensa”. Não diz isso em privado, mas pu-bli-ca-men-te, de forma agressiva, tudo gravado e filmado. Com esse discurso, em qualquer país, não se elegeria, mas num país doente como o Monculdumundistão tem grandes chances. Por que?
Pas Lui se apresenta como o paladino da luta pela moralidade. Como Collor de Mello, Aécio Neves e Geddel Vieira ele denuncia a corrupção dos outros, mas esconde a sua. Paga salário de doméstica para cuidar do seu cachorro com dinheiro público, é citado na lista de Furnas como receptor de propina e como integrante de esquema de corrupção ativa, de ter sonegado impostos, de receber propina da JBL, de enriquecimento ilícito através da máquina pública em suspeita de lavagem de dinheiro, de envolvimento em Caixa 2 de campanha.
O fascismo
No entanto, milhares de eleitores não estão preocupados com os fatos, como sacou o linguista Noam Chomsky. Eles estão justificadamente decepcionados e transformaram a decepção em ódio. Votam naquilo que Pas Lui jura representar: a rejeição a um sistema que não resolveu os problemas básicos da população. Eleitores enceguecidos, envenenados, caem uma vez mais na lábia de aventureiros, como no voto em Collor e depois em Aécio. Não raciocinam, não ligam para a degradação humana e para a derrota da inteligência que Pas Lui encarna.
Não sabemos se a cantora Ângela Maria, na outra dimensão em que se encontra, pode imaginar qual país sairá das urnas neste domingo. No Brasil dilacerado, dividido, quem é que canta o lariri, o larilá? Milhões de eleitores esperam o príncipe encantado, escondido no corpo de uma hiena que se alimenta de cadáveres. Mas qualquer que seja o resultado, “enquanto houver estrada para andar / a gente vai continuar”, como canta a rainha do rádio. A luta continua. Na guerra civil espanhola, o poeta César Vallejo anteviu a vitória do fascismo, mas abriu uma janela de esperança:
– Crianças do mundo, se cai Espanha – digo só por dizer – se a mãe Espanha cai, saí, crianças do mundo, ide a procurá-la”.
P.S. – Já morrendo de saudades de um Brasil que ouvia Ângela Maria. Se tiver dois minutos, ouça Cinderela https://www.youtube.com/watch?v=3FTWMT552EI
Ou então Los piconeros cantada por ela em espanhol Ya se ocultó la luna, luna lunera – https://www.youtube.com/watch?v=kN2F5JxdbIU
P.S. 2 – Felizmente nenhum candidato precisa do meu voto para passar para o segundo turno. Mas eu preciso do meu voto. Guilherme Boulos 50 (presidente), governador Tarcisio (50), senador Chico Alencar (500) deputada federal Taliria Petrone 5077 e deputada estadual Mônica Francisco 50888.