Lá se foi nosso Jardim, levando pra outra galáxia um pouco da poesia e do sonho que nos acalentou. Poeta e jornalista, 84 anos, Reynaldo Jardim decolou na madrugada da terça-feira do Hospital do Coração, em Brasília. No dia anterior, pediu à sua mulher Elaina Daher:
– “Não quero choro nem vela, só samba”.
No velório, no Teatro Nacional, parentes e amigos se despediram, tristes, mas cantando. Houve só “choro de flauta, violão e cavaquinho”. Se dependesse do Reynaldo, a mulata da fita amarela, do samba de Noel Rosa, sapatearia sobre seu caixão, desmoralizando a morte. É a cara dele.
A notícia circulou nos principais jornais do país. O Globo, com chamadinha discreta, remeteu o leitor para o Obituário. A Folha de S. Paulo, estranhamente, deu no Caderno Poder, além da homenagem de Jânio de Freitas em sua coluna. O Estadão, sisudo e pedante, informou que “Silveira escreveu livros de poesia”, que “Silveira criou o Caderno B do Jornal do Brasil”. O “jornalismo investigativo” descobriu que o poeta carregava, além de flores, um sobrenome que nunca usou.
Esperamos as colunas dos amigos de Reynaldo, Zuenir Ventura e Ruy Castro, no sábado, mas eles abordaram outros temas. Zuenir escreveu sobre seu cálculo renal, e Ruy Castro sobre a morte da atriz Maria Schneider do filme “O último tango em Paris”.
Os critérios usados pela mídia para hierarquizar a notícia não são os mesmos que cada um usa quando faz seu próprio jornal, íntimo e pessoal. Quem conviveu com Reynaldo Jardim, mesmo por pouco tempo, abriu dentro do peito uma foto dele sorridente com manchete em oito colunas, anunciando sua partida em letras garrafais. Ela nos afetou mais que o “sacrifício” do Sarney, a vitória do Flamengo, o apagão no Nordeste, a morte de Maria Schneider ou a crise do Egito. E não apenas por razões afetivas, mas pelo lugar dele na poesia, no jornalismo e na cultura brasileira.
Rey, o jornalista
Jardim, o multimídia, tocou vários instrumentos: jornal, revista, rádio e TV. Liderou a reforma gráfica do Jornal do Brasil e ali criou o Caderno B e o Suplemento Dominical que se tornou um ninho de poetas e escritores e um modelo para outros jornais. Bolou o sistema “música e informação” da Rádio JB, atuou em outras rádios e marcou toda a radiofonia brasileira, segundo Jânio de Freitas. Dirigiu o telejornalismo da TV Globo, recém-inaugurada, obtendo o primeiro lugar na audiência ao colocar câmeras no telhado e no terraço da emissora para transmitir as cenas da enchente de 1966.
Ele dirigiu Senhor e Panorama, foi redator das revistas O Cruzeiro, Manchete e Bundas e fez romaria por todo Brasil, do Oiapoque ao Chuí, revolucionando a roupagem de velhos jornalões. Reformou três jornais no Paraná, dois em Brasília, o Diário da Manhã, de Goiás, O Liberal no Pará e tantos outros.
Por onde passava, deixava as redações contaminadas com sua alegria e seu jeito de tratar a notícia. Foi assim n’A Crítica, de Manaus, onde tomou banho de igarapé, pescou, namorou, modernizou a linguagem e a diagramação, fez poesia e amigos, arejou pessoas e deixou saudades. Umberto Calderaro, responsável por sua contratação, nunca esqueceu a revolução em seu jornal, conforme me confidenciou várias vezes, depois que soube das aventuras que tive o privilégio de compartilhar com Reynaldo Jardim.
A primeira delas foi no jornal-escola O Sol, um diário do Rio de Janeiro, que começou, em 1967, como suplemento do Jornal dos Sports, um projeto gráfico inovador elaborado por Reynaldo e Ana Arruda Callado. Revoltou-se contra a embalagem da notícia, sempre a mesma fórmula em todos os jornais: lead, sub-lead… Ele nos fez redescobrir o prazer do texto, da ousadia, da inovação.
Lá, n’O SOL, um dia, quando a redação, dividida, discutia acaloradamente sobre a melhor manchete, sem chegar a um acordo, Reynaldo chamou o porteiro que decidiu o que era melhor para o leitor. Essa é uma lição de jornalismo que poucos cursos são capazes de dar. Depois disso, me parece evidente que o porteiro, como leitor, é que deve ser o árbitro.
Quando O SOL entrou em ocaso, dezembro de 1967, Reynaldo, Ana Callado e seus 50 repórteres criaram uma cooperativa jornalística que editou durante alguns meses o semanário Poder Jovem, vendido nas ruas por nós mesmos. Um dia, fui flagrado por meu primo Sebastião Mendonça, na Praça Mauá: – Você é jornalista ou jornaleiro? – me perguntou ele, surpreso. É que, com Reynaldo, os limites dessas coisas ficavam difusos, a gente fazia tudo e qualquer coisa, até televisão, se fosse preciso.
Foi preciso. A TV Continental, com Fernando Barbosa Lima, convidou Reynaldo, em 1968, para o Jornal de Vanguarda e ele levou pra lá a minha juventude e inexperiência. Era a época das grandes passeatas estudantis. Saí para cobrir uma delas. O centro do Rio era uma praça de guerra com a adesão dos offices boys que jogavam pedras na polícia. Do alto de um edifício na Rua México, alguém atirou uma máquina de escrever que caiu sobre o ombro de um policial, obrigando-o a soltar um manifestante preso. Podia ter acertado o jovem, que teve sorte e se escafedeu.
– Deus é estudante – eu disse, depois de relatar o fato. Reynaldo ouviu atentamente. No Jornal de Vanguarda, ele fazia um poema por dia, comentando em versos o acontecimento mais importante. Nessa noite, cada estrofe do poema que ele escreveu terminava com o verso: “Como disse Riba, Deus é estudante”. Reynaldo Jardim, o Pitangui dos jornais, foi uma usina de versos.
O poeta
Quando O Sol estava nas bancas de revista, Reynaldo assistiu a um show da Maria Bethânia, entrou em transe e escreveu de uma só golfada Maria Bethânia, Guerreira, Guerrilha, onde nos contava que “o fogo do sonho / não é fogo de palha / tem o corte seco / da seca navalha / no capim mimoso / o fogo se espalha”. Foram dez livros de poesia, o último Sangradas Escrituras, com todos seus poemas em mais de 800 páginas, foi lançado há um ano. Vale a pena uma pequena amostra.
No poema Pórtico dos Fundos, ele define sua relação com a poesia, com a arte e com a vida: “Afinal de contas / nem gosto tanto assim de poesia. / Gosto mais de música. Só música / sem palavras nem aplausos. / De pintura. Só pintura / Sem teoria ou mensagem / De cinema. Só cinema/ sem mesa redonda / nem voto popular./ E da vida / sem título / sem vínculo /sem legendas”.
“Se eu quiser falar com Deus – canta Reynaldo em Sangradas Escrituras – tenho que abaixar a crista, tenho que seguir à risca o que o Gil nos ensinou. Tenho que aguardar na lista minha vez, minha audiência, uma vaca de paciência, ruminando meus pecados. Quando chegar minha vez, tenho que soltar o grito. Pois daqui ao infinito, Deus não vai me escutar. Ele está ficando surdo, já não enxerga direito. Contragosto e contrafeito com o mundo que criou. Antes de falar com Deus, eu arrumo um pistolão. Pode ser Antônio ou João, qualquer santo de prestígio. Tenho que levar presentes, minha alma, meu delírio, a luz acesa de um círio, que ele está na escuridão”.
Desafiante, quase insolente, o poeta prossegue: “Se eu quiser, mas eu não quero, que esse Deus é prepotente. Ele é onipresente, só não está onde estou. Se quiser falar comigo, não atendo o celular. Não deixo a mesa do bar, que esse chope está demais. Eu só vou falar com Deus, quando ele matar a fome dessa criança sem nome, que não para de chorar. Quando ele descer do céu e vir que cada menino, sem presente, sem destino, precisa de um beijo seu”.
Foi Reynaldo Jardim que me encaminhou para trabalhar em O PAIZ, ressuscitado em 1968 pelas mãos de Joel Silveira, Newton Rodrigues e Félix de Athayde. Foi ele também que no ano seguinte me levou como repórter especial para o CORREIO DA MANHÃ, cujo chefe de redação era Franklin de Oliveira. Depois de oito anos de exílio, só voltei a vê-lo, em 2006, no lançamento do documentário Caminhando contra o vento, de Tetê Moraes e Marta Alencar, que conta a trajetória do jornal O SOL. Foi ai que ele me perguntou:
– O que você acha de fazermos O SOL outra vez?
O entusiasmo de Jardim é contagiante. Topei na hora, mesmo sabendo que era brincadeira. Mas com Jardim, o legal é que tudo é brincadeira, incluindo as coisas mais sérias. Estimulado pelo fogo do seu sonho, que no capim mimoso se espalha, a gente faz qualquer coisa. Serei até jornaleiro, outra vez. Agora, que ele partiu, na contramão lhe digo: Não descansa em paz, meu amigo. O descanso é para os mortais. A tua poesia continua agitando e incendiando o mundo.
Publicado originalmente no jornal Diário do Amazonas.