Por Ribamar Bessa:
Museus têm esse poder de eliminar preconceitos? Será que um museu indígena ajudaria a evitar crimes que bradam ao Céu e pedem a Deus vingança como o do kaingangzinho de dois anos degolado, em dezembro, em Santa Catarina? Ou o assassinato a coices, em janeiro, do índio que dormia na rua em Belo Horizonte? Como impedir atentados de ódio e racismo que se repetirão do Oiapoque ao Chuí em fevereiro, março, abril? Essas perguntas eu faria ao xamã huichol se pudesse retomar hoje a conversa iniciada com ele há mais de quinze anos, no México.
Conheci Maurílio Trinidad, o sábio huichol, em novembro de 2000, no sopé do vulcão Ceboruco, numa caminhada pelas ruas calçadas de paralelepípedos da cidadezinha de Jala. Desfilamos lado a lado por um corredor de antigos casarões de pedra e adobe, debaixo de salgueiros e acácias vermelhas, acompanhando uma banda local de mariachis que tocava harpa, violino e guitarra, como parte da programação cultural do Encontro da Nova Museologia (MINOM). Nossa conversa versou sobre museus indígenas do Brasil e do México.
Paramentado com trajes coloridos de marakame (xamã), Maurílio descreveu o Museu Comunitário Huichol que reúne coleções arqueológicas e etnográficas de arte huichol contemporânea. Contou como a beleza das peças exibidas contribuiu para que eles fossem vistos com mais respeito e simpatia. Informou que a arte huichol está exposta em muitos outros museus. Não falou de qualquer criança indígena guilhotinada no povoado de Huajimic ao pé da Sierra Madre Ocidental, município La Yesca, no Estado de Nayarit, onde o museu se localiza.
Luz dos Huicholes
Três anos depois, em 2003, visitei em Puerto Vallarta, Jalisco, o Museu de Arte Huichol, que lembra os Guarani pela religiosidade que emana. Foi lá que vi as urus – flechas sagradas lançadas ao céu com pedidos de benção aos deuses, a kuka – máscara cerimonial tridimensional de cabaça coberta com conchas e corais, o nierika – disco de madeira com espelho no centro que reflete a visão xamânica após o uso do peiote, além das bolsas de tecido colorido que protegem os usuários. Muitos objetos estão à venda e são substituídos na hora por outros que são confeccionados diante do visitante.
A venda de peças do museu de significado religioso gerou polêmica entre os huichol. Definiram, então, os produtos que podem ser comercializáveis: colares e pulseiras, esculturas de madeira, tabuleiros com tecidos coloridos de couro e sapatos estilo mocassim. Duas conhecidas empresas americanas, uma de Boston – New Balance e a outra da Califórnia – Vans, se inspiraram na arte huichol. Esta última criou recentemente a linha Vans X Huichol Vaut, com uma coleção exclusiva de 360 pares de tênis únicos decorados com fios de pérolas coloridas.
As duas empresas conheceram a cultura huichol através do museu. No México, moradores de pequenos povoados criaram mais de 160 museus comunitários espalhados pelo país. O prestígio da instituição entre a população pobre é tão forte que numa ocupação dos sem-terra em Zacatecas, em 1992, na hora de distribuir os lotes, todos concordaram em reservar o espaço mais nobre para a construção de um museu comunitário, segundo informou Marta Galván, líder camponesa, no Primeiro Encontro Regional do Movimento Internacional para uma Nova Museologia (MINOM).
Este Encontro contou com mais de 100 participantes de diferentes regiões do México, além do Brasil, Canadá e Inglaterra. Vários relatos informaram como esses museus cuidam dos sítios arqueológicos, impedindo o saqueio do patrimônio aí existente, preservam a memória e a história da comunidade, zelam pelo meio ambiente com exposições sobre o lixo orgânico e inorgânico ou sobre a salvação dos rios poluídos, realizam oficinas de artesanato e de danças populares, combatem o preconceito, discutem cidadania, direitos humanos e o cotidiano.
Comunidades que querem organizar seus museus recebem assessoria técnica do Programa Nacional de Museus Comunitários e apoio logístico do Instituto Nacional de Antropologia e Historia (INAH), que transportou os convidados deste Primeiro Encontro, enquanto moradores de três pequenos povoados denominados de “mágicos” pela UNESCO – Ahuacatlán, Jala e Ixtlan del Rio – ofereceram hospedagem gratuita. Nós fomos recebidos em residências de famílias que não nos conheciam, mas nos alojaram com casa, comida e afeto.
Museu do Oiapoque
O que eu poderia dizer sobre o Brasil num evento preocupado com museus comunitários realizado logo no México, onde se vai ao museu como se vai à escola ou à igreja: com regularidade e unção? Na conversa com o xamã, falei com entusiasmo do Museu Maguta criado em 1991 pelos Tikuna, no Amazonas, e do Museu Sacaca inaugurado em 1997, no Amapá. Ficaram de fora o Museu Kuahí dos Povos Indígenas do Oiapoque, que só seria aberto em 2007, assim como os museus indígenas do Ceará e de Pernambuco que também não existiam ainda.
Se pudesse retomar a conversa com o sábio huichol lhe daria notícias atuais do Museu Kuahí, localizado estrategicamente na fronteira do Brasil com a Guiana Francesa e o Suriname, com coleções dos povos do Oiapoque: Karipuna, Palikur, Galibi Marworno e Galibi Kalinã. Descreveria a sede que conta com duas salas de exposição, auditório, sala de consulta e leitura, espaço para atividades pedagógicas e loja de artigos indígenas, tudo administrado pelos próprios índios.
Mas entregaria ao xamã huichol a recente moção da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), que manifesta sua inquietação com a desativação do museu “devido a problemas estruturais do prédio que no momento encontra-se sem telhado e com o piso removido” e só não morreu graças ao seu corpo técnico. Trata-se do único museu do município “que atende a toda região, envolvendo estudantes, população indígena e não indígena e turistas nacionais e estrangeiros”. A ABA reivindica a conclusão do processo de recuperação física do Museu.
O descaso do governo do Amapá com o funcionamento deste centro de preservação da memória indígena, pode levá-lo à morte. Se um museu contribui para combater preconceitos, seu fechamento acirra ainda mais a discriminação e a violência contra os índios.
Quando é que o Brasil celebrará as culturas indígenas, como o fez o então presidente do México, Adolfo López Mateos, na inauguração do Museu Nacional de Antropologia, em 1964? No seu discurso ele disse:
“O povo mexicano ergue este monumento em honra das admiráveis culturas que floresceram durante a era Pré-colombiana em regiões que são, agora, território da República. Diante dos testemunhos daquelas culturas, o México de hoje rende homenagem ao México indígena, em cujo exemplo reconhece características de sua originalidade nacional”.
P.S. 1 – Agradeço à antropóloga Antonella Tassinari as notícias e fotos sobre o Museu Kuahí, à especialista em Moda e Designer Léa Schmitt os dados recentes sobre arte huichol e à museóloga Odalice Priosti do Ecomuseu Comunitário de Santa Cruz (RJ) o convite para participar do Primeiro Encontro Regional do MINOM no México no ano 2000.
P.S.2 – Ver também artigos do autor: 1) Encontro de Museus Comunitários no México. Museu ao Vivo. Boletim do Museu do Índio/Funai – RJ ano XI, nº 19, janeiro de 2001; 2) Sociedades Indígenas e Turismo. In: Brasil. Ministério do Turismo. (Org.). Turismo Social – Diálogos do Turismo – Uma viagem de inclusão. Rio de Janeiro: IBAM – Instituto Brasileiro de Administração Municipal, 2006, p. 178-204; 3) O Patrimônio Cultural Índigena. In: Márcio Souza;. (Org.). Um olhar sobre a cultura brasileira. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1998, p. 335-350.