Do CONJUR, Por Raul Haidar
A recente Portaria RFB 1.265, de 3 de setembro, assinada pelo atual secretário da Receita Federal, é um ato administrativo que reúne as características que ostenta boa parte das medidas adotadas pela administração fazendária deste país: é inútil e desagradável.
Inútil porque, ao dizer que vai adotar procedimentos para cobrança administrativa de débitos fiscais, nada mais anuncia que sua intenção de dar cumprimento a suas obrigações. Desagradável porque, como bem registrou O Estado de S. Paulo, trata-se ato típico daquilo que se pode denominar “terrorismo tributário”.
Ao que parece os atos administrativos baixados pelo fisco em geral e especialmente pela Receita Federal estão sendo criados sem qualquer exame de sua legitimidade jurídica.
Isso indica apenas duas hipóteses: a) as autoridades fazendárias não contam com qualquer assessoria jurídica; ou b) essa assessoria está ocupada demais com as respostas, explicações ou defesas para tentar consertar os equívocos praticados por jejunos em noções básicas de direito.
Na ementa que pretende indicar o fundamento da portaria, consta que o seu autor estribou-se nas “atribuições que lhe conferem os incisos III e IV do art. 280 do Regimento Interno da Secretaria da Receita Federal do Brasil, aprovado pela Portaria MF 203 de 14 de maio de 2012”.
Tal regimento interno é um verdadeiro cipoal, que muda ao sabor das ondas de lama onde floresce ou sob os efeitos das ventanias que sopram a cada escândalo, produzido no ambiente onde foi plantado. Tente o leitor consultá-lo e verificará que é composto de mais de trezentos artigos e dezenas de anexos!
São tantas as iniquidades contidas na tal portaria, que comentá-las item a item é trabalho insano. Na verdade, suas normas não compõem um “ato administrativo”, mas bombas de ignorância jurídica ou armas da megalomania burocrática que ousa ignorar os direitos assegurados pela vigente Constituição Federal.
Mais uma vez ficam claras e permanecem perenes as lições de Ruy na “Oração aos Moços”, quando afastou a aplicação do princípio da presunção de legitimidade dos atos administrativos:
“Não vos mistureis com os togados que contraíram a doença de achar sempre razão ao Estado, ao governo, à Fazenda, pelo que os condecora o povo com o título de “fazendeiros”. Essa presunção de terem, de ordinário, razão contra o resto do mundo,nenhuma lei a reconhece à Fazenda, ao Governo ou ao Estado. Antes, se admissível fosse qualquer presunção, havia de ser em sentido contrário. Pois essas entidades são as mais irresponsáveis, as que mais abundam em meios de corromper, as que exercem as perseguições, administrativas, políticas e policiais, as que, demitindo funcionários indemissíveis, rasgando contratos solenes, consumando lesões de toda a ordem (por não serem os perpetradores de tais atentados os que por eles pagam), acumulam, continuadamente sobre o Tesouro Público, terríveis responsabilidades. No Brasil, durante o Império, os liberais tinham por artigo do seu programa cercear os privilégios, já espantosos, da Fazenda Nacional. Pasmoso é que eles na República, se cem-dobrem ainda, concultando-se até, a Constituição em pontos de alto melindre, para assegurar ao Fisco essa situação monstruosa; e ainda haja quem, sobre todas essas conquistas, lhe queira granjear a de um lugar de predileções e vantagens na consciência judiciária,no fôro íntimo de cada magistrado.”
Essa portaria é uma coletânea de atos do chamado “terrorismo tributário”.
Seus supostos destinatários ou vítimas se realmente são devedores, estão sujeitos aos mecanismos legais da execução fiscal e de uma série de medidas capazes de assegurar o cumprimento da lei. O que cabe à Receita Federal é, apurada em definitivo a dívida, encaminhá-la inscrição e à cobrança judicial. Para isso existe a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, que é aparelhada para o desempenho de sua função.
Veja-se que o Congresso Nacional, muitas vezes genuflexo ante o poderio do fisco, já passou por cima de vários princípios constitucionais e deu respaldo a formas de pressão sobre o devedor que não favorecem a boa aplicação dos princípios básicos do direito, a começar pelo da isonomia.
O contribuinte que deve sujeita-se a execução, arrolamento ou indisponibilidade de bens, Cadin, protesto de CDA, e até mesmo, em determinadas circunstâncias, a processo criminal. Já a pessoa que tiver valores a receber do Poder Público que espere…
Vejam-se, a propósito, as simples restituições de tributos pagos a maior, as desapropriações do Incra, os créditos da Vasp, os precatórios e tantos outros calotes que essa “coisa” que chamamos de governo aplica contra o povo. Já há quem pense em tornar-se anarquista, virar bicho grilo e não pagar mais nada a ninguém, mudar-se para Miami se tiver dinheiro ou para o Uruguai ou Paraguai se não tiver tanto.
Pretender a administração fazendária que o buraco orçamentário seja coberto por atos dessa natureza é mais um lamentável equívoco. Os contribuintes que devem mais de 10 milhões de reais ao fisco não irão correndo entregar-se à forca, pois já estão enforcados pelo mesmo carrasco que os ameaça.
Talvez pior do que essa porcaria (desculpe-me o leitor: não consegui resistir) , digo, Portaria, é o pretendido aumento de tributos que o superior hierárquico do Secretário deseja nos impor.
Já defendemos nesta coluna, em 31 de outubro de 2011 e também em 27 de abril de 2015 que a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas poderia ser uma forma de alcançarmos um pouco de Justiça Tributária e melhorar a arrecadação do país. Também comentamos a conveniência de promover o retorno de divisas levadas para fora do país em 4 de junho de 2012.
Essas questões, contudo, sujeitam-se a processo legislativo demorado. Mas esses assuntos, assim como o Código de Defesa do Contribuinte, andam a passos de tartaruga no Congresso, hoje e sempre mais preocupado consigo mesmo e com seus interesses mesquinhos do que com o povo.
A tal portaria, qualquer pessoa sabe, não é lei. Assim, não obriga a ninguém, não altera qualquer direito e deve submeter-me à apreciação do Judiciário onde por certo será anulada. Não venham com essa história ridícula de “faz parte da legislação”. Ademais, os atos administrativos sujeitam-se ao artigo 37 da Constituição, claramente ignorado neste caso e às leis ordinárias em geral.
A Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que “Regula o processo administrativo do âmbito da Administração Pública Federal” foi solenemente ignorada pela portaria.
Em seu artigo 2º ela ordena que a administração “obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, jurídica, interesse público e eficiência.”
Determina ainda que nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de atuação conforme a lei e o Direito, bem como:
a) a indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão;
b) a observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados; e
c) garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio.
Como essa lei está em vigor, tudo indica que o signatário da portaria aqui analisada arvorou-se em autor de medida legal sem a levar ao exame de quem conheça a lei.
Em 2016, o atual secretário completará 30 anos de serviço na Receita Federal. Antes disso, foi fiscal de tributos em Vila Velha (ES). Talvez possa aposentar-se e, a exemplo do que fez um de seus antecessores, que era geólogo, tornar-se “consultor tributário”. Afinal, mesmo sendo formado em administração de empresas, recebeu o título “economista do ano”. E viva a Wikipédia!
Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.