“A Justiça é representada por uma mulher semi-nua, com os seios à mostra, com os olhos vendados, sem nada enxergar e, pior ainda, portando uma arma, a espada. Portanto, não se pode nela confiar.” (Jean Carcagne)
Neste período difícil da economia brasileira muitas pessoas perderam seus empregos e buscam sobreviver criando pequenas empresas. Isso é salutar para o país, pois melhora a economia e abre novas oportunidades de trabalho.
Todos os níveis de governo declaram que essa é a nossa grande solução. O governo federal, através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) tem anunciado que incentiva micro, pequenas e médias empresas, tendo criado até um cartão de crédito para facilitar que tais empreendedores financiem seus negócios com o mínimo possível de burocracia. Estados e municípios facilitam a abertura desses negócios. Afirmam hoje que é possível em poucos dias abrir uma empresa.
Mas na prática a teoria é outra. Uma pequena empresa individual, criada em 2008 num shopping, mudou-se para local mais modesto em 2015 como forma de adequar-se às atuais condições do país. Sempre pagou religiosamente seus tributos. Trocou de contador, optando por escritório menor, a custos mais razoáveis.
O novo contador verificou que, em decorrência da chamada “guerra fiscal” de ICMS e da idiotice denominada “substituição tributária”, foram cometidos na escrituração dois equívocos: por erro de digitação foi registrado valor que não existia em determinado mês, enquanto outro fora declarado a maior. Comunicou tais fatos ao posto fiscal para as necessárias retificações, através dos mecanismos informatizados existentes.
Ironia máxima: no mês de maio, próximo ao “Dia Nacional de Respeito ao Contribuinte”, a empresa recebeu aviso de Cartório de Protesto, decorrente daqueles lançamentos indevidos, cuja correção solicitara espontaneamente, na forma e tempo corretos!
A Lei 12.325/2010, que criou tal “comemoração” diz que nas repartições fazendárias os “servidores de tais órgãos participarão ativamente das atividades de celebração do Dia Nacional de Respeito ao Contribuinte.” Os leitores verão mais sobre isso na coluna de 25 de maio de 2015, com o título “O Dia Nacional do Respeito ao Contribuinte existe; só falta o respeito”.
A empresária teve que contratar advogado para resolver o assunto, pois se for protestada, seus negócios serão prejudicados. Como alguns de nossos governantes, ficaria com o nome sujo!
O contador que cometeu o erro assumiu a responsabilidade e os custos da questão. O valor da suposta dívida sequer pode ser depositado em juízo, eis que, com encargos e multas, ultrapassa o faturamento da empresa, já muito comprometido com salários, encargos, aluguel etc.
O terrorismo fiscal está claro. No posto fiscal a empresa sequer foi atendida. Informaram que o ajuste demora cerca de 90 dias (sic), o que não se explicava nem no tempo da máquina de escrever! Isso por causa de GREVE dos fiscais. O Estado paga mal, gasta mal e o contribuinte sofre!
O pior desses atos de terrorismo é que, além de serem desagradáveis, são inúteis. Maior tragédia ainda é que o protesto de CDA foi considerado legal pelo Superior Tribunal de Justiça, o que deixa em dúvida o saber jurídico de seus ministros.
Veja-se que o STJ anteriormente decidira de forma totalmente contrária. Parte da decisão, sendo relator o então ministro Cesar Asfor Rocha, é muito clara:
“Se a CDA comprova o inadimplemento do débito fiscal, gozando inclusive de presunção de certeza e liquidez, não há sentido em admitir que ela seja levada a protesto, porque a finalidade deste, nos termos do art. 1º da Lei 9.492/1997 é a prova do inadimplemento e o descumprimento da obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida. A única forma de se cobrar dívida fiscal é por meio de execução fiscal e, para tanto, basta que a Fazenda Pública instrua a petição inicial executiva com a CDA. Assim, o protesto não se enquadra no procedimento legal previsto para a cobrança da dívida ativa.” (AgrRg no Rec. Esp. 1.277.348, Relator Min. Cesar Asfor Rocha).
Sobre tais protestos, viabilizados pela Lei 12.767 de 28 de dezembro de 2012, que resultou da MP 577, manifestei-me poucos dias depois de sua vigência, como se vê em nossa coluna de 7 de janeiro de 2013, com o título “Contribuinte deve protestar e não ser protestado”.
Por essas e outras razões é que já afirmei diversas vezes que, em matéria tributária, neste país até o passado é imprevisível!
Themis, que era a deusa da Justiça, por aqui já se tornou prostituta, como afirmou James Hetfield, da banda Metallica, que se referia a outro país na música Justice for All. Ouvindo-a com atenção, publiquei coluna em 30 de janeiro de 2015 sugerindo que “profissionais do Direito deveriam ouvir mais heavy metal”.
A par desses posicionamentos da instância superior, há divergências sobre o assunto. O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, já decidiu da seguinte forma:
“Conclui-se que o escopo do protesto é garantir o direito creditício face ao devedor. Contudo, a Fazenda Pública carece de interesse em protestar os débitos inscritos em Dívida Ativa, ante a exequibilidade do título, que goza da presunção de certeza e liquidez. De fato, explica HUGO DE BRITO MACHADO: “A dívida ativa regularmente inscrita goza de presunção de certeza e liquidez. A certidão de inscrição respectiva tem o efeito de prova pré-constituída (CTN, art. 204). Essa presunção, todavia, é relativa, podendo ser elidida por prova inequívoca a cargo do sujeito passivo ou do terceiro a quem aproveite (CTN, art. 204, parágrafo único). A isto equivale dizer que a dívida ativa regularmente inscrita é líquida até prova em contrário. Líquida quanto a seu montante; certa, quanto à sua legalidade.” (Curso de Direito Tributário 29ª ed. Malheiros pág. 258). E, conforme bem observado por LUIZ EMYGDIO F. ROSA JR.: “A Fazenda Pública não tem interesse em protestar a Certidão de Dívida Ativa, porque o único objetivo de tal protesto é aplicar sanção política ao contribuinte (STJ, REsp 287.824 MG). O Fisco dispõe de meio próprio para cobrança de tributos consistentes na execução fiscal disciplinada pela Lei nº 6.830/80” (Títulos de Crédito Renovar 7ª ed. pág. 386)” (TJSP. Apelação nº 1016914-30.2014.8.26.0068. Re. Des. Carlos Eduardo Pachi. D. J. 10.06.2015).
Em decisão mais recente, de 19 de outubro de 2016, no Agravo de Instrumento 2136468-78.2016.8.26.0000, sendo relator o desembargador José Maria Câmara Júnior registrou-se que:
“Ressalvado entendimento pessoal do Relator, prevalência do entendimento predominante na Câmara, que aponta para a ausência de interesse para a Fazenda promover o protesto do título executivo. A busca pela satisfação do crédito deve operar-se do meio menos gravoso para o devedor. Comprovação dos requisitos legais para a concessão da liminar. Protestos sustados. Decisão reformada.”
Ora, se foi emitida uma CDA, que pode gerar de imediato uma Execução Fiscal, com penhora de bens e bloqueio de ativos financeiros, parece ser razoável supor que os protestos servem apenas para melhorar as receitas dos Tabelionatos.
Tentam justificar o protesto dizendo que processos judiciais custam mais e são demorados. Processos são demorados porque não se cumpre a disposição constitucional que ordena sua “razoável duração”.
Noticiamos em 5 de março de 2014 que a Justiça obrigou a Receita Federal a decidir processo administrativo em 10 (dez) dias!
Se há milhões de processos que não deveriam existir, isso tem remédio. Para início de conversa, deveria haver um esforço relativamente simples: arquivar todas as execuções fiscais que já estão prescritas.
Há notícia na ConJur de execução de ICMS paralisada por mais de 12 anos!
A lei vigente não apenas permite, mas obriga o magistrado a extinguir processos que perderam a razão de existir.
O Judiciário ainda não acordou para a necessidade de reinventar-se, chegando ao século 21. Há magistrados brilhantes que se preocupam com solenidades, medalhas e coisas sem importância, quando poderiam organizar um grande mutirão para reduzir a quantidade de processos inúteis. E por favor: aposentem essas capas pretas!
Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.