“Ninguém pode servir a dois senhores. Não podeis servir a Deus e às riquezas”. (Mateus 6:24)
Não rezo! Para este santo, eu não rezo. Já avisei minhas nove irmãs, todas elas rezadeiras, que não contem com minhas orações para o novo santo canonizado nesta quarta-feira pelo simpático papa Francisco. Nenhuma ave-maria, sequer um amém este santo ouvirá de mim. Na hora da Ladainha de Todos os Santos, cantarei alegremente o Kyrie Eleison, mas quando mencionarem o nome de São Junípero, não direi “Rogai por nós”. Fecho o bico. Não quero que ele rogue por mim. Não reconheço nele odor de santidade, com todo respeito ao papa.
Na sua viagem apostólica a Cuba e aos Estados Unidos, o papa decidiu canonizar o frade franciscano Junípero Serra (1713-1784), fundador de reduções indígenas que deram origem a Los Angeles, San Francisco, San Diego e outras cidades da Califórnia. O rito de canonização foi celebrado na Basílica do Santuário da Imaculada Conceição, em Washington, na presença de 40 mil fiéis, entre eles cerca de 4 mil seminaristas, que entoaram o Veni Creator Spiritus e a Ladainha de todos os santos.
O novo santo apresentado como “o evangelizador da Califórnia” teve sua biografia lida durante a cerimônia. O papa, que o dispensou da comprovação de um segundo milagre, como já o fizera com Anchieta, se baseou no livro escrito por frei Francisco Palou, em 1787, para anunciar o up grade de Junípero e dizer que ele nos inspira devoção:
“Declaramos e definimos como Santo Junípero Serra, inscrito agora no Catálogo dos Santos e estabelecemos que em toda a Igreja seja devotadamente honrado entre os Santos”.
A queda do céu
Não honro. Para ele, não rezo. O que Junípero – aqui pra nós, um nome pior do que Ribamar – fez para ser santo? Esse Anchieta dos gringos evangelizou índios, entre outros os Pame, cuja língua teria aprendido, traduzindo para esse idioma orações e catecismos. Fez isso – escreve seu biógrafo – para acabar com “las depravadas costumbres” dos índios, andando sempre com “una preciosa escolta de soldados y aprendió el idioma de aquellos bárbaros para poder explicarles por este medio que el fin de haber venido a su tierra era para dirigir al Cielo sus almas”.
Nos anos em que conviveu com índios de Sierra Gorda, em Queretaro, México, quando os índios foram arrancados de suas aldeias de origem e tiveram suas terras usurpadas, frei Junípero “criou nove missões onde não apenas explicava o Evangelho, mas também ensinava aos índios os rudimentos do trabalho da agricultura e pecuária, bem como fiação e tecelagem“.
Juro que é essa a versão oficial que circula. Não sei se é para gargalhar ou para chorar dessa grotesca ofensa às culturas indígenas, todas elas formadas por refinados agricultores, que domesticaram centenas de plantas, muitas das quais desconhecidas dos europeus, realizaram experimentos genéticos, praticaram sofisticada agricultura cultivando desde 5.000 a.C. centenas de espécies nativas. Além disso, eram tecelões que fiavam e teciam peças coloridas de rara qualidade encontradas em muitos museus, especialmente no Museu Nacional de Antropologia inaugurado em 1964 no México.
Agora, alguém é nomeado santo diz-que por haver ensinado o que os índios já estavam carecas de saber, numa versão oficial e preconceituosa que atribui ao europeu o papel de herói civilizador. Lembra muito o episódio narrado por Davi Kopenawa no belo e imperdível livro que fez com Bruce Albert – A Queda do Céu. No dia 19 de abril de 1989, durante as comemorações do Dia do Índio, o general Bayma Denis, chefe da Casa Militar do governo Sarney, pergunta a Davi Yanomami:
– O povo de vocês gostaria de receber informações sobre como cultivar a terra?
– Não. O que queremos é a demarcação do nosso território – respondeu de bate pronto Davi.
Santo ou pecador?
O general Bayma, o outro “santo” que não distingue as variedades da mandioca Jaçanã da Saracura ou da Gema de Ovo e que nunca plantou nada além de notícias duvidosas nos jornais, pretendia ensinar o cultivo da terra aos Yanomami, que havia alguns milênios já plantavam centenas de variedades de espécies em suas roças. Mais audaz ainda do que o general foi o frade, cujo milagre foi ter ensinado os “selvagens” a tecer e fiar, além da agricultura, é claro.
A guerra agora é pela versão dos fatos. “Os mortos não estarão salvos se o inimigo continuar vencendo e esse inimigo ainda não parou de vencer” como anuncia Walter Benjamin em suas teses sobre filosofia da história. Na disputa pela memória, quem controla a imagem dos índios continua sendo o “inimigo”, que apresenta-os como destituídos de saber, de religião e de civilização. A canonização de Junípero está sendo usada em termos propagandísticos para reforçar o apagamento das culturas indígenas, aumentar o preconceito e promover o que Hoornaert denomina de “catolicismo guerreiro e triunfante”.
No seu livro sobre Junípero Serra, o historiador Steven W. Hackel, ex-professor da Universidade de Oregon não confirma as acusações de que Junípero teria escravizado índios, mas reconhece que ele usou o porrete e a violência castigando fisicamente aqueles que fugiam da Missão. Segundo Hackel, Junípero mandou muitas almas para o céu, porque os índios missionados morreram aos milhares vítimas de epidemias e de mudanças no estilo de vida imposto pela Igreja.
A conclusão de alguns críticos que defendem uma história não panfletária é a de que Junípero Serra não foi o exterminador racista que se pintou, mas está longe de ser um santo, trata-se apenas de uma figura polêmica, ou seja, um “idealista” que para salvar as almas dos índios, destruiu suas comunidades. Sua canonização acaba legitimando tais procedimentos de usurpação de terras e de satanização de culturas.
A Maloca e o Capitólio
E o que pensam os índios?
Toypurina Carac, porta-voz do povo indígena Kizh, que ocupava todo o território onde hoje está a cidade de Los Angeles, declarou à Agência France Press que se “opõe radicalmente à nomeação de santo do responsável pela morte de nossa gente e de nossa cultura“. Quem concorda com ele é o líder da Comissão de Índios Nativo-Americanos de Los Angeles, Ron Andrade, para quem Junípero foi um “conquistador cruel” numa empreitada que matou milhares de índios em nome do cristianismo:
“Isto não o torna um santo. Sua canonização contradiz o pedido de perdão do papa, em julho, pelos “pecados” cometidos pela Igreja Católica contra os povos da América. Como você pode pedir para perdoar e esquecer? Matamos seus ancestrais, estupramos suas mulheres, brutalizamos sua religião, entregamos suas terras à Igreja Católica. Como podemos perdoar e esquecer?”.
Com esta canonização o papa não está vendo o lado dos índios. É uma provocação tão grande quando o Paulinho da Força quando puxa o saco do Eduardo Cunha, entoando o coro: “Cunha / guerreiro / do povo brasileiro”. Há quem veja uma jogada política do papa em defesa dos imigrantes, alegando que a canonização de Junípero torna visível a existência da ocupação dos Estados Unidos por católicos espanhóis muito antes dos britânicos protestantes.
Cabe, então, a pergunta: se o objetivo é mesmo esse, por que em vez do polêmico Junípero o papa não coloca no altar um defensor radical dos índios como Bartolomé de Las Casas? Junípero já foi canonizado pela Casa Branca, sua imagem, digo sua estátua está lá, há muito, no Capitólio, em Washington, como um dos “pais da pátria” norte-americana, ao lado de outro “santo” que é nada mais nada menos que o ex-presidente Ronald Reagan. É possível servir a dois senhores: a Maloca e o Capitólio?
P.S. Textos citados:
BENJAMIN, Walter: “Teses sobre Filosofia da História” in Walter Benjamin. Sociologia. Org. Flávio R. Kothe. São Paulo: Editora Ática. 1985.
HACKEL, Steven W. Junípero Serra: California’s Founding Father. New York. Hill and Wang, 2013
HOORNAERT, Eduardo. Formação do Catolicismo Brasileiro. Vozes. Petrópolis. 1974
KOPENAWA, Davi e ALBERT, Bruce – A Queda do Céu. Palavras de um Xamã Yanomami”. São Paulo. Companhia das Letras. 2015 (Prefácio de Eduardo Viveiros de Castro).
PALOU, Francisco Relacion historica de la vida y apostolicas tareas del Venerable Padre Fray Junipero Serra, y de las Misiones que fundó en la Carolina Septentrional, y nuevos establecimientos de Monterey. México. Imprenta Zúñiga y Ontiveros, 1787.
Ver também:
Anchieta: o santo do pau oco – http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=1081