Por Igor Mauler Santiago para o CONSULTOR JURÍDICO:
Em dezembro passado, o Supremo Tribunal Federal declarou a repercussão geral do RE 595.236/PE, que versa sobre a aplicação da EC 20/98 às sentenças trabalhistas proferidas antes da sua edição.
Como se sabe, essa emenda deu à Justiça do Trabalho competência para executar de ofício a contribuição sobre a folha de pagamentos e a contribuição do empregado decorrentes das sentenças que proferir (art. 114, § 3º, da Constituição, depois renumerado para art. 114, VIII, pela EC nº 45/2004).
A decisão assenta na premissa de que a constitucionalidade do mecanismo teria sido atestada no RE 569.056/PA[1], cabendo agora discutir somente a possibilidade de sua aplicação retroativa.
Trata-se de premissa inexata, a nosso ver. A leitura do acórdão revela que este não fez mais do que limitar a execução de ofício às sentenças que impõem o pagamento de verbas trabalhistas, afastando-a daquelas que se resumem a reconhecer o vínculo de emprego em um dado período, sem qualquer conseqüência pecuniária.
Objetar-se-á que o tribunal não firmaria a interpretação da regra sem antes verificar a sua validade (iura novit curia), a qual seria, dessa forma, questão superada.
Não pensamos que seja assim. Desde logo, porque o tema não estava em debate naqueles autos, tendo a manifestação do relator a respeito — à qual se voltará adiante — valor de simples obter dictum não acompanhado ou rebatido por qualquer de seus pares.
Depois porque não existe decisão tácita de constitucionalidade, especialmente no STF.
E, de toda forma, porque nada lhe impediria de rever a sua jurisprudência, como tem feito sempre que entende necessário (depósito recursal administrativo, crédito de IPI por insumos isentos, etc.).
E parece-nos que o novo julgamento será uma excelente oportunidade para o exame aprofundado desta questão preliminar, por serem várias as cláusulas pétreas afrontadas pela execução judicial ex officio[2].
Anote-se de saída que, também quanto às sentenças que obrigam ao pagamento de verbas trabalhistas de valor determinado, a apuração das contribuições previdenciárias pelo juiz “é, sem dúvida, lançamento, posto que realizado, não pela autoridade administrativa, mas pela autoridade judicial, em processo jurisdicional”[3].
Com efeito, se muitas vezes é dispensável para o cumprimento espontâneo da obrigação tributária (exigibilidade), o lançamento faz-se quase sempre necessário — salvo o discutível caso dos créditos não-contenciosos — para a exigência coativa daquela (executoriedade), dando início ao processo de constituição do título executivo da Fazenda Pública.
Pois bem: ao contrário do que se passa com os títulos executivos judiciais, formados após processo contraditório decidido de forma imparcial, e com a maioria dos outros títulos executivos extrajudiciais — dotados de menor grau de certeza, mas constituídos por declaração livre do devedor (cheques, notas promissórias, contratos firmados perante testemunhas, etc.) — a certidão de dívida ativa tributária decorre de ato unilateral do credor.
A falta de consentimento do obrigado, que não seria mesmo de se esperar, é suprida pela oportunidade de impugnação administrativa do débito perante órgão paritário. Só então é que o tributo se reveste de presunção de certeza e liquidez forte o suficiente para autorizar a execução direta, com salto sobre o processo de conhecimento e constrição imediata dos bens do sujeito passivo[4].
Por constituir passo incontornável no acertamento do tributo, o processo administrativo não pode ser suprimido, pena de ofensa ao devido processo legal (CF, art. 5º, LIV c/c art. 60, § 4º, IV).
Não se diga, como fez o relator do RE 569.056/PA no já referido obter dictum, que o simples fato de estar prevista em lei (ou melhor, em dispositivo inserido na Constituição por meio de emenda) bastaria para determinar a compatibilidade da execução de ofício com o devido processo legal.
Tal literalismo não faz justiça à jurisprudência da Corte, que desde muito tempo reconhece a existência do substantive due process of law, limite de razoabilidade e de justiça contraposto às leis restritivas de direitos, para que não resvalem no arbítrio (Pleno: ADI-MC nº 223/DF, ADI-MC nº 1.511/DF, AC nº 1.033-AgR-QO/DF).
E nem se pretenda que a supressão do processo administrativo é compensada pela existência de pronunciamento judicial (do juiz do Trabalho) sobre a existência da dívida, etapa inicial da execução de ofício, e que a defesa que poderia ser produzida na esfera administrativa pode sê-lo também — e com vantagem — no âmbito judicial.
Primeiro porque, ao proceder ao lançamento e em seguida tomar a iniciativa da execução, o juiz — distanciando-se de sua inércia característica — não atua como tal, mas como agente administrativo, em ilícita miscigenação de funções (ofensa à separação dos Poderes – CF, art. 60, § 4º, III).
Segundo porque, tendo lançado e executado os créditos, perde a neutralidade necessária para julgar os embargos acaso opostos pelo contribuinte contra a “sua” execução, ficando este último desprovido da “garantia plena de um julgamento imparcial, justo, regular e independente (fair trial)” (Pleno, Ext. 633/China).
Terceiro porque as disputas suscitadas nesses embargos nada terão que ver com as questões trabalhistas definidas na sentença, constituindo lide nova a interessar unicamente à União e ao particular, por isso atraindo a competência da Justiça Federal (CF, art. 109, I) — juiz natural que não pode ser substituído por autoridade com diversa especialização técnica.
Para completar, e aqui não se está mais a analisar a emenda, a disciplina legal de tais embargos atenta contra a ampla defesa (CF, art. 5º, LV), seja pelo reduzidíssimo escopo que lhes defere (cumprimento da decisão ou do acordo, quitação ou prescrição da dívida — CLT, art. 884, § 1º), seja ainda pelo exíguo prazo de cinco dias a que os submete (idem, caput).
Esse rebaixamento dos juízes, da sua hierática equidistância ao papel de pressurosos coadjutores da administração tributária é de preocupar ainda mais quando se nota que a arrecadação “proporcionada” pelo Judiciário é hoje criteriosamente medida pelo CNJ, como se a taxa de sucesso de uma das partes em litígio constituísse indício de eficiência do aparato judiciário.
Assim, no relatório Justiça em Números de 2010 aprende-se que a Justiça Estadual “arrecadou” em execuções fiscais o equivalente a 9,2% de suas despesas totais, proporção que sobe para 17,5% na Justiça do Trabalho, considerando apenas a execução de ofício das contribuições previdenciárias, e para impressionantes 170,2% na Justiça Federal.
Ficam as perguntas:
● a Justiça seria menos eficiente se, por culpa dos outros Poderes, parte expressiva dos créditos executados fosse improcedente, não gerando arrecadação expressiva?
● um juiz para quem sejam distribuídas mais execuções insubsistentes do que viáveis — ou que tenha orientação mais favorável ao contribuinte — será considerado menos produtivo, para fins de merecimento e quiçá correicionais?
Melhor nem continuar…
Nem toda inovação é benfazeja. Nem todo conservadorismo é malsão.
Conservemos a imparcialidade de nossos juízes.
[2] A sindicabilidade das emendas constitucionais é ponto pacífico na jurisprudência do STF desde a ADI nº 939/DF (Pleno, Rel. Min. SYDNEY SANCHES, DJ 18.03.94, p. 5.165).
Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG. Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.